“AINDA QUE EU ANDE PELO VALE DA SOMBRA DA MORTE”
“Ainda
que eu ande pelo vale da sombra da morte, não temerei mal nenhum, porque tu
estás comigo; o teu bordão e o teu cajado me consolam” (Sl 23.4).
Os verdadeiros
crentes, ainda que habitem seguros sob a proteção de Deus, estão, não obstante,
expostos a muitos perigos, ou, melhor, são passíveis de todo gênero de aflições
que sobrevêm à humanidade em comum, para que eles possam melhor sentir o quanto
necessitam da proteção divina. Davi, pois, neste ponto, expressamente declara que,
se alguma adversidade lhe sobreviesse, ele se protegeria na providência divina.
E assim ele não promete a si mesmo buscar apoio nos prazeres contínuos [e
terrenos], senão que se fortifica, através do socorro divino, corajosamente a fim
de suportar as diversas calamidades que porventura o visitassem. Prosseguindo
sua metáfora, ele compara o cuidado que Deus assume ao governar os verdadeiros
crentes com o bordão e o cajado do pastor, declarando que está satisfeito com
isso como sobejamente satisfatório à proteção de sua vida. Como uma ovelha,
quando vagueia e atravessa um vale escuro, é preservada imune dos ataques das
feras selvagens e de outras formas de males, tão-somente mediante a presença do
pastor, assim Davi ora declara que enquanto estiver exposto a algum perigo, contará
com suficiente defesa e proteção, estando sob o cuidado pastoral de Deus.
E assim vemos
como, em sua prosperidade, ele nunca esquecia que era um ser humano, mas, mesmo
assim, oportunamente meditava sobre as adversidades que mais tarde poderiam lhe
sobrevir. E com toda certeza, a razão por que nos sentimos tão terrificados
quando Deus se agrada em exercitar-nos com a cruz é porque toda pessoa, para
que durma profunda e tranquilamente, se abriga totalmente na segurança carnal. Mas
há uma grande diferença entre esse sono do estúpido e o repouso que a fé
produz. Visto que Deus prova a fé pela adversidade, segue-se que ninguém
realmente confia em Deus, senão aquele que se arma com invencível constância
para resistir todos os medos com que é assaltado. Contudo Davi não quis dizer
que estava destituído de todo medo, mas apenas que o superaria para então
prosseguir sem medo sempre que seu pastor o guiasse. Isso transparece mais
claramente à luz do contexto. Ele diz, em primeiro lugar, não temerei mal
algum; mas imediatamente acrescenta a razão disso, ou seja, publicamente reconhece
que busca um antídoto contra seu medo ao contemplar e ao ter seus olhos fixos
na vara de seu pastor: Porque o teu bordão e o teu cajado me consolam. Que
necessidade teria ele dessa consolação, não fosse o fato de sentir-se inquieto e
agitado pelo medo? Deve, pois, ter-se em mente que, quando Davi refletiu sobre
as adversidades que poderiam lhe sobrevir, tornou-se vitorioso sobre o medo e
as tentações, e não de outra forma senão lançando-se sob a proteção divina.
Isso ele havia também afirmado antes, embora um tanto obscuramente, nestas
palavras: Porque tu estás comigo. Isso subentende que ele fora afligido com o
medo. Não houvera sido esse o caso, com que propósito desejaria ele a presença
de Deus? Além disso, não é só contra as calamidades comuns e ordinárias da vida
que ele opõe a proteção divina, mas também contra aqueles que distraem e
confundem as mentes humanas com as trevas da morte. Por sombra da morte, uma
palavra composta, é como se dissesse: sombra mortal. Davi, neste ponto,
faz uma alusão aos recessos ou covas escuras de animais selvagens, das quais,
se alguém se aproxima, é subitamente dominado, logo na entrada, pela
preocupação e pelo medo da morte. Ora, visto que, na pessoa de seu unigénito Filho,
Deus tem se revelado como nosso Pastor, muito mais claramente do que o fez nos
tempos antigos a nossos pais que viveram sob o regime da lei, não haveremos
rendido suficiente honra ao seu protetor cuidado, caso não ergamos nossos olhos
para mirá-lo e conservá-los fixos nele, pisoteando todos os temores e terrores
sob a planta de nossos pés.
Deus nos
abençoe!
João Calvino (1509-1564).
*Faça-nos a oferta (Chave Pix - 083.620.762-91).
*Visite uma Igreja Presbiteriana do Brasil - Curitiba(PR).
Nenhum comentário:
Postar um comentário