“LUGARES ESCORREGADIOS”
“Certamente tu os puseste em lugares escorregadios; tu os precipitarás na destruição” (Sl 73.18).
O salmista, passando em revista seus conflitos, começa, se pudermos usar
tal expressão, sentindo-se um novo homem; e fala com mente tranquila e
compassada, sendo, por assim
dizer, elevado a uma torre
de vigia, donde obtém uma clara e distinta visão das coisas que antes
lhe eram ocultas. A resolução do profeta Habacuque era de assumir tal posição,
e, por seu exemplo, ele nos prescreve isso como um antídoto em meio às
tribulações - “Pôr-me-ei em minha guarda”, diz ele, “e pôr-me-ei sobre a torre”
(Hc 2.1).
O salmista, pois, mostra quanta vantagem se pode derivar do acesso a
Deus. Agora vejo, diz ele, como procedes em tua providência; pois, embora os
ímpios continuem estáveis por um breve tempo, contudo estão, por assim dizer, empoleirados
em lugares escorregadios, a fim de caírem antes que sejam precipitados na
destruição. Ambos os verbos deste versículo estão no pretérito; mas o primeiro,
os puseste em lugares escorregadios,
deve ser entendido no tempo presente, como se houvesse dito: Deus, por um breve
período, os põe em lugares altos, e, quando caem, sua queda pode ser
extremamente pesada. É verdade que essa parece ser a porção tanto dos justos quanto
dos ímpios; pois tudo neste mundo é escorregadio, incerto e mutável. Visto, porém, que os crentes dependem do céu,
ou, melhor, visto que o poder de Deus é o fundamento sobre o qual descansam,
não se afirma deles que são postos em lugares escorregadios, não obstante a
fragilidade e incerteza que caracterizam sua condição neste mundo. Que embora
tremam ou mesmo caiam, o Senhor tem sua mão sob eles para sustê-los e
fortalecê-los quando tremerem, e erguê-los quando estiverem prostrados.
A incerteza da condição dos ímpios, ou, como ele aqui o expressa, sua
condição escorregadia, procede disto: que eles sentem prazer em contemplar seu
próprio poder e grandeza, e se admiram por essa conta, tal como uma pessoa que
teria de caminhar ociosamente sobre o gelo; e assim, por sua enfatuada
presunção, se preparam para cair de ponta cabeça. Não devemos delinear em nossa
imaginação a roda da fortuna, a qual, quando gira, enreda todas as coisas em
total confusão; devemos, porém, admitir a verdade em relação à qual o profeta
aqui chama a atenção, e a qual ele nos diz se faz conhecida de todos os santos
no santuário, ou, seja, que há uma secreta e divina providência que administra
todas as atividades do mundo.
Deus nos abençoe!
João Calvino (1509-1564).
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