SALMO 10.1
“Por que, SENHOR, te conservas longe? E te escondes nas horas de tribulação?”
SALMO 10.1
“Por que, SENHOR, te conservas longe? E te escondes nas horas de tribulação?”
"Volta-te, SENHOR, e livra a minha alma; salva-me por tua graça (Sl 6.4).
“Evidentemente,
grande é o mistério da piedade: Aquele que foi manifestado na carne foi
justificado em espírito, contemplado por
anjos, pregado entre os gentios, crido no mundo, recebido na glória” (1Tm
3.16).
Contemplado pelos anjos, pregado entre os gentios. Todas essas afirmações
são maravilhosas e espantosas, ou seja, que Deus se dignou conferir aos gentios
– o que até então havia sido vago e incerto ante a cegueira de suas mentes – a revelação
de seu Filho que estivera oculto dos próprios anjos celestiais! Porque, dizer
que ele foi visto pelos anjos significa que essa foi uma visão que, por sua
novidade e excelência, atraiu a atenção dos anjos. Quão singular e extraordinária
foi a vocação dos gentios. (Efésios 2). Nem causa estranheza que a mesma tenha
atraído a visão dos anjos, porque, ainda que tivessem conhecimento da redenção
da humanidade, afinal não sabiam como seria ela realizada, e teria sido oculta
deles com o fim de que a grandeza da benevolência divina pudesse ser
contemplada por eles com admiração mais intensa.
Crido no mundo. É
espantoso, acima de tudo, que Deus haja concedido igual participação de sua
revelação aos gentios profanos e aos anjos que era a terna herança de seu reino.
Mas essa poderosa eficácia do evangelho proclamado pelo qual Cristo venceu
todos os obstáculos e introduziu à obediência da fé os que pareciam
completamente incapazes de ser subjugados, não era de forma alguma um milagre
comum. Certamente, nada parecia ser mais improvável, tão completamente fechada
e selada estava a entrada. Não obstante, por meio de uma vitória quase incrível,
a fé venceu.
Finalmente, o apóstolo diz que ele
foi recebido na glória, ou seja, depois desta vida mortal e miserável.
Portanto, quer no mundo, pela obediência de fé, quer na pessoa de Cristo, uma
maravilhosa mudança se operou, pois ele foi exaltado do execrável estado de
servo à gloriosa destra do Pai, para que todo joelho se dobre diante dele.
Aleluia!
João
Calvino (1509-1564).
*Comentários, Pastorais - Edições Paracletos.
“Evidentemente, grande é o mistério da
piedade: Aquele que foi manifestado na carne foi justificado em espírito,
contemplado por anjos, pregado entre os gentios, crido no mundo, recebido na
glória” (1Tm 3.16).
Justificado em espírito. Como
o Filho de Deus a si mesmo se esvaziou ao tomar para si nossa carne (Fp 2.7),
assim também manifestou-se nele um poder espiritual que testificou que ele era Deus. Esta passagem tem sido interpretada de diferentes
formas, mas fico satisfeito em explicar a intenção do apóstolo como a entendo
sem adicionar nada mais. Em primeiro lugar, a justificação, aqui, significa um
reconhecimento do poder divino, como no Salmo 51.3, onde se diz quer os juízos de
Deus são justificados, ou seja,
maravilhosa e completamente perfeitos. Note-se também o Salmo 51.4, onde se diz
que Deus é justificado, significando que o louvor de sua justiça se exibe claramente.
Assim também em Mateus 11.19 e Lucas 7.35, onde Cristo diz que a sabedoria é
justificada por seus filhos, significando que neles o valor da sabedoria se evidencia.
Além do mais, em Lucas 7.29 se diz que os publicanos justificavam a Deus, significando
que na devida reverência e gratidão reconheciam a graça de Deus que discerniam
em Cristo. Portanto, o que lemos aqui tem o mesmo sentido se Paulo dissesse que
aquele que se manifestou vestido de carne humana foi declarado ao mesmo tempo
ser o Filho de Deus, de modo que a fragilidade da carne de forma alguma
denegriu sua glória.
À palavra
“Espírito” ele inclui tudo o que em Cristo era divino e superior ao homem, e
isso ele o faz por duas razões. Primeira, visto que Cristo fora humilhado na
carne, Paulo agora contrasta o Espírito com a carne, ao exibir nitidamente sua
glória. Segunda, a glória, digna do unigênito Filho de Deus, que João afirma
ter visto em Cristo (Jo 1.14), não consistia de uma manifestação externa ou de esplendor
terreno, senão que era quase totalmente espiritual. A mesma forma de expressão
é usada no primeiro capítulo de Romanos 1.3,4: “com respeito a seu
Filho, o qual, segundo a carne, veio da descendência de Davi e foi designado Filho de Deus com poder, segundo o espírito de santidade pela ressurreição dos mortos, a saber Jesus Cristo, nosso Senhor”;
mas com esta diferença, ou seja, que nesta passagem ele menciona uma manifestação
especial de sua glória, a saber, a ressurreição.
Aleluia!
João
Calvino (1509-1564).
*Comentários, Pastorais - Edições Paracletos.
“Evidentemente,
grande é o mistério da piedade: Aquele que foi manifestado na carne foi
justificado em espírito, contemplado por anjos, pregado entre os gentios, crido
no mundo, recebido na glória” (1Tm 3.16).
Para
impedir que a verdade de Deus seja estimada abaixo do real valor, em
decorrência da ingratidão humana, o apóstolo Paulo declara seu genuíno valor,
dizendo que o segredo da piedade é imensurável, visto que ele não trata de temas
triviais, e, sim, da revelação do Filho de Deus, em quem estão ocultos os
tesouros da sabedoria (Cl 2.3). Á luz da imensidão dessas coisas, os pastores
devem entender a importância de seu ofício e devotar-se a ele com a mais profunda
consciência e reverência.
Deus se manifestou em carne.
A Vulgata exclui a palavra “Deus” e relaciona o que se segue com o mistério;
mas isso é devido à falta de perícia e conformidade, como se verá claramente à
luz de uma leitura atenciosa; e ainda que ela conte com o apoio de Erasmo, este
destrói a autoridade de sua própria tradução, de modo que a mesma dispensa
qualquer refutação de minha parte. Todos os manuscritos gregos, indubitavelmente,
concordam com a tradução: “Deus se manifestou em carne”. Mas, mesmo presumindo
que Paulo não houvera expressamente escrito a palavra Deus, quem quer que considere todo o assunto com cuidado concordará
que se deve pôr a palavra “Cristo”.
No que me toca, não tenho dificuldade alguma em seguir o texto grego aceito. É óbvia
sua razão para denominar a manifestação de Cristo, a qual agora passa a
descrever, de “grande mistério”, porque esta é a altura, a largura, o
comprimento e a profundidade da sabedoria que ele menciona em Efésios 3.18, e
pelo quê nossas faculdades são inevitavelmente subjugadas.
Examinemos
agora as diferentes cláusulas deste versículo em ordem. A descrição mais
adequada da pessoa de Cristo está contida nas palavras: “Deus se manifestou em
carne”. Em primeiro lugar, temos aqui uma afirmação distinta de ambas as
naturezas, pois o apóstolo declara que Cristo é ao mesmo tempo verdadeiro Deus
e verdadeiro homem. Em segundo lugar, ele põe em evidência a distinção entre as
duas naturezas, pois primeiramente o denomina de Deus, e em seguida declara sua manifestação em carne. E, em terceiro
lugar ele assevera a unidade de sua Pessoa, ao declarar que ela era uma e mesma
Pessoa que era Deus e que se manifestou em carne. Nesta única frase, a fé
genuína e ortodoxa é poderosamente armada contra Ário, Marcião, Nestório e Êutico.
Há forte ênfase no contraste das duas palavras: Deus e carne. A diferença entre Deus e o homem é imensa, e, todavia
em Cristo vemos a glória infinita de Deus unida à nossa carne poluída, de tal
sorte que ambas se tornaram uma só [videmus
in Christo coniunctam cum hac nostra carnis putredine, ut unum efficiant].
Aleluia!
João
Calvino (1509-1564).
*Comentários, Pastorais - Edições Paracletos.
“Para fazeres Justiça ao Órfão e
ao Oprimido”
“Para fazeres justiça ao órfão e
ao oprimido, a fim de que o homem, que é da terra, já não infunda terror” (Sl
10.18).
“Para fazeres justiça ao órfão e
ao oprimido”. Aqui o salmista aplica a última frase do versículo anterior com um
propósito especial, ou seja, prevenir os fiéis, quando forem injustamente
oprimidos, a que não duvidem de que Deus por fim tomará vingança de seus
inimigos e lhes concederá livramento. Com essas palavras ele nos ensina que
devemos suportar com paciência e determinação as aflições que nos são impostas,
visto que Deus às vezes nega assistência a seus servos até que sejam reduzidos
a extremos. Esse é na verdade um dever de difícil execução, porquanto todos nós
desejamos muito ser isentos de problemas; e, portanto, se Deus não vem
imediatamente em nosso socorro, concluímos que ele é remisso e inativo. Mas se
estamos ansiosamente desejosos de obter sua assistência, então devemos subjugar
nosso sentimento, restringir nossa impaciência e manter nossas preocupações
dentro dos devidos limites, esperando até que nossas aflições alcancem o
exercício de sua compaixão e o incite a manifestar sua graça, nos socorrendo.
“A fim de que o homem, que é da terra, já não
infunda terror”. Davi uma vez mais enaltece o poder divino em destruir os ímpios; e o
faz com o seguinte propósito: que em meio aos seus tumultuosos assaltos
possamos ter este princípio profundamente arraigado em nossas mentes: Deus,
sempre que lhe apraz, transforma seus intentos em nada. E embora os perversos
prosperem em sua perversa trajetória, e ergam suas cabeças acima das nuvens, é
muito apropriado descrevê-los como mortais ou homens
passíveis de muitas calamidades. O propósito do salmista é
indiretamente condenar sua enfatuada presunção, em que, ignorando sua condição,
esbravejam ameaças terríveis e cruéis, como se estivesse além do poder do
próprio Deus reprimir a violência de sua raiva. Ao dizer que são homens
da terra, contém um tácito contraste entre as baixezas deste mundo e
as alturas do céu. Porque, donde procede a agressão aos filhos de Deus?
Indubitavelmente, da terra, precisamente como se muitos vermes emergissem das
cavidades do solo; mas, ao agir assim, atacam o próprio Deus, que promete
socorrer seus servos lá do seu alto e sublime trono.
Amém!
João
Calvino (1509-1564).
*Resumo dos comentários, Salmo 10 -
Edições Paracletos.
“Tens ouvido, SENHOR, o desejo dos humildes; tu lhes
fortalecerás o coração e lhes acudirás” (Sl 10.17).
Quando os infiéis prevalecem na Igreja, ou excedem os fiéis em número, devemos, incessantemente, rogar a Deus que os erradique; porquanto um estado tão confuso e vexatório deve seguramente ser motivo de profunda tristeza para todos os servos de Deus.
Tens ouvido, SENHOR, o desejo dos humildes. Com essas palavras, o Espírito Santo também nos assegura que o que Deus desde outrora concedeu aos pais, em resposta de suas orações, nós, nos dias atuais, também receberemos, desde que cultivemos essa profunda solicitude em relação ao livramento da Igreja. A sequência do versículo: Tu lhes fortalecerás o coração, é de forma variada interpretada pelos expositores. Há quem entenda que significa o mesmo que: Tu farás que seus desejos se concretizem. Segundo outros, o significado é este: Tu moldarás e santificarás seus corações, pela graça, para que nada peçam em oração senão o que é certo e esteja em harmonia com a vontade de Deus. É provável que essas explicações sejam um tanto forçadas. Entendemos que Davi, com essas palavras, magnifica a graça divina em fortalecer e confortar a seus servos em meio às suas tribulações e angústias, a fim de que não submergissem em desespero, munindo-os com vigor e paciência, inspirando-os com sólida esperança e incitando-os também à oração. É uma bênção singular a que Deus nos confere quando, em meio às tentações, ele nutre nossos corações, não os deixando retroceder dele, nem buscando em outra fonte algum outro apoio e livramento. O significado do que imediatamente se segue — e lhes acudirás — consiste em que não é em vão que Deus dirija os corações de seu povo e o guie em obediência aos seus mandamentos, para que seu povo olhe para ele e o invoque cheio de esperança e paciência — não é em vão porque seus ouvidos jamais se fecharão ante os gemidos de seu povo. Portanto, ordena-se aqui a harmonia mútua entre os dois exercícios religiosos. Deus não tolera que a fé de seus servos feneça ou fracasse, nem permite que eles desistam de orar; mas os mantém perto de si, pela fé e pela oração, até que realmente se evidencie que sua esperança não foi nem vã nem ineficaz.
Amém!
João Calvino (1509-1564).
*Resumo dos comentários, Salmo 10 -
Edições Paracletos.
“O SENHOR
é rei eterno: da sua terra somem-se as nações” (Sl 10.16).
“O SENHOR é rei eterno”. Davi agora, como que tendo saciado os anseios de seu coração, expressa seu regozijo e sua gratidão. Ao chamar Deus, Rei eterno, ele apresenta um emblema de sua confiança e alegria. Com o título, Rei, ele reivindica para Deus o ofício de Soberano do mundo, e ao descrevê-lo como Rei eterno, ele prova quão absurda é a tentativa de confiná-lo dentro dos limites do tempo.
“Da sua terra somem-se as nações”. O significado é este: a terra santa, finalmente, foi expurgada das abominações e impurezas com que fora poluída. Constituiu-se numa terrível profanação o fato de a terra que havia sido dada por herança ao povo de Deus, e distribuída com os que o adoravam com pureza, passasse a nutrir os habitantes ímpios e perversos. Com o termo, nações ou pagãos, o salmista não quer dizer estrangeiros e os que não pertenciam à raça de Abraão segundo a carne, mas os infiéis que falsamente se vangloriavam de pertencer ao povo de Deus, justamente como hoje muitos que são cristãos nominais ocupam um espaço no seio da Igreja. Não é nenhuma novidade os profetas chamarem de apóstatas aos que se haviam degenerado das virtudes e vidas santas de seus pais, evocando o título de pagãos, bem como comparando-os não só com os incircuncisos, mas também com os próprios cananeus, que eram os mais detestáveis dentre todos os pagãos. “Veio a mim a palavra do SENHOR, dizendo: Filho do homem, faze conhecer a Jerusalém as suas abominações; e dize: Assim diz o SENHOR Deus a Jerusalém: A tua origem e o teu nascimento procedem da terra dos cananeus; teu pai era amorreu, e tua mãe, heteia” (Ez 16.1-3).
Davi, portanto, ao aplicar o desonroso título de pagãos, aos falsos e bastardos filhos de Abraão, rende graças a Deus por haver ele expulso de sua Igreja uma classe tão nociva. Com esse exemplo, somos ensinados que não é nenhuma novidade se em nosso próprio tempo virmos a Igreja de Deus poluída pelos homens profanos e irreligiosos. Devemos, contudo, rogar a Deus que purifique imediatamente sua casa, e não deixe seu santo templo exposto à execração de homens infiéis.
Amém!
João Calvino (1509-1564).
*Resumo dos comentários, Salmo 10 - Edições Paracletos.