“VENDO A NUDEZ DO PAI, FÊ-LO SABER, FORA”
“Sendo Noé
lavrador, passou a plantar uma vinha. Bebendo do vinho, embriagou-se e se pôs
nu dentro de sua tenda. Cam, pai de Canaã, vendo a nudez do pai, fê-lo saber,
fora, a seus dois irmãos (Gn 9.20-22).
Essa
circunstância é acrescentada para agravar a dor de Noé, pois ele é
ridicularizado por seu próprio filho. Por isso, devemos manter sempre na
memória que essa punição lhe foi divinamente infligida, em parte porque sua
falha não era de caráter leve, em parte para que Deus, em sua pessoa,
apresentasse uma lição de temperança a todas as épocas. Em si, a embriaguez tem
como recompensa o seguinte fato: que aqueles que apagam de si mesmos a imagem
de seu Pai celestial se tornam motivo de riso para seus próprios filhos. Pois
certamente, tanto quanto possível, os ébrios subvertem seu próprio entendimento
e se privam ao máximo da razão, a ponto de degenerar-se em animais irracionais.
E recordemo-nos que, se o Senhor se vingou tão seriamente de uma única
transgressão do santo homem, ele certamente será o vingador não menos severo
contra os que vivem diariamente embriagados; e disso temos exemplos suficientemente
numerosos diante de nossos olhos.
Enquanto isso,
por rir-se desdenhosamente de seu pai, Cam revela seu próprio caráter depravado
e maligno. Bem sabemos que os pais, depois de Deus, devem ser profundamente
reverenciados; e, se não houvesse nem livros, nem sermões, a própria natureza
nos inculca constantemente essa lição. O consenso popular concorda que a
piedade para com os pais é a mãe de todas as virtudes. Portanto, Cam teria sido
de uma disposição excessivamente ímpia, perversa e depravada; posto que ele não
somente tomou gosto pelo opróbrio do pai, mas também se dispôs a lhe expor a
seus irmãos. E isso não se constitui uma leve ocasião de ofensa; primeiro, que
Noé, o ministro da salvação aos homens e o principal restaurador do mundo, em
extrema velhice, ficou embriagado em sua casa; e, segundo, que o ímpio e
perverso Cam tivesse saído do santuário de Deus. Este selecionou oito almas
para ser uma santa semente, totalmente purificada de toda e qualquer corrupção,
para renovação da Igreja; mas o filho de Noé mostra quão necessário é que os
homens sejam refreados por Deus, por mais que sejam exaltados por privilégios.
A impiedade de Cam
nos prova quão profunda é a raiz da perversidade nos homens; e que ela produz continuamente
seus brotos, exceto onde o poder do Espírito prevalece sobre ela. Mas se, no
sagrado santuário de Deus, no meio de tão exíguo número, se preservou um diabo,
não nos maravilhemos se hoje, na Igreja, contendo uma multidão muito maior de
pessoas, os maus se acham misturados com os bons. Não hão qualquer dúvida de
que a mente de Sem e Jafé foi gravemente ferida quando perceberam em seu próprio
irmão tão grande escárnio, e, por outro lado, seu pai vergonhosamente prostrado
ali no chão. Que loucura vil foi vista no príncipe do novo mundo! E o santo
patriarca da Igreja não podia surpreendê-los menos do que eles tivessem visto a
própria arca quebrada, lançada em pedaços, partida e destruída. Entretanto, sua
magnanimidade vence também o motivo desse escândalo, e o esconde por sua
modéstia.
Somente Cam se
apodera avidamente da oportunidade para ridicularizar e injuriar a seu pai;
exatamente como os homens perversos estão acostumados a aproveitar as ofensas
dos outros, as quais podem servir de pretexto para entregarem-se ao pecado. E
sua idade o torna menos desculpável, porquanto não era um jovem lascivo que, por
sua irrefletida gargalhada, se deixasse trair por sua própria insensatez, visto
que sua idade já passava dos 100 anos. Portanto é provável que ele
perversamente tenha insultado dessa maneira a seu pai querendo conquistar para
si a licença para pecar impunimente. Hoje vemos muitos agirem assim, os quais,
com muito empenho espionam as falhas de pessoas santas e piedosas com o
objetivo de, sem qualquer pudor, se entregarem a toda e qualquer iniquidade;
inclusive tomam as falhas de outras pessoas como ocasião de endurecimento para
assim menosprezarem a Deus.
Deus nos
abençoe!
João Calvino (1509-1564).
*Visite a Igreja Presbiteriana do Brasil - Curitiba/PR.

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