“O AMOR QUE PROCEDE DE CORAÇÃO PURO”
“Mas o intuito da presente admoestação é o amor que procede de coração
puro, de uma consciência íntegra, e de uma fé sem fingimento” (1Tm 1.5).
Se o objetivo e o fim da lei é que sejamos instruídos no amor que nasce
da fé e de uma consciência íntegra, conclui-se, pois, que aqueles que desviam
seu ensino para questões motivadas pela curiosidade são maus intérpretes da
lei. Nesta passagem, não é de grande relevância se o amor é considerado como uma
referência a ambas as tábuas da lei ou só a segunda. Recebemos o mandamento de
amar a Deus de todo o nosso coração e ao nosso próximo como a nós mesmos, ainda
que, quando o amor é mencionado na Escritura, geralmente se restrinja mais ao
amor ao próximo. Neste versículo, não hesitaria em entender o amor como
sendo tanto a Deus quanto ao próximo, se Paulo houvera mencionado unicamente a
palavra amor. Visto, porém, que ele acrescenta a fé e uma consciência íntegra,
a interpretação que estou para apresentar se adequa muito bem ao contexto em
que ele está escrevendo. A suma da lei consiste em que devemos adorar a Deus
com uma fé genuína e uma consciência pura, bem como devemos igualmente amar uns
aos outros; e todo aquele que se desvia disso corrompe a lei de Deus,
torcendo-a para servir a algum outro propósito alheio a ela mesma.
Aqui, porém, pode surgir uma dúvida, ou seja: Paulo, aparentemente,
situa o amor antes da fé. Minha resposta é que aqueles que pensam assim estão
se portando como infantis, pois o fato de o amor ser mencionado primeiro não
significa que ele desfruta do primeiro lugar de honra, já que Paulo também
deixa em evidência que ele procede da fé. Ora, a causa, indubitavelmente, tem
prioridade sobre o efeito, e se todo o contexto for levado em conta, o que
Paulo está dizendo é o seguinte: “A lei nos foi promulgada a fim de
instruir-nos na fé, a qual é a mãe de uma consciência íntegra e de um amor
genuíno”. Daí termos que começar com a fé e não com o amor.
Há pouca distinção entre coração
puro e consciência íntegra. Ambos são frutos da fé. Atos 15.9 fala de um
coração puro, ao dizer que “Deus purifica os corações mediante a fé”. E Pedro
diz que uma consciência íntegra está fundamentada na ressurreição de Cristo
(1Pe 3.21). À luz desta passagem torna-se evidente que não pode haver amor sem
o temor de Deus e a integridade de consciência. Devemos notar os termos que
Paulo usa para descrever cada uma dessas virtudes. Não há nada mais comum ou
mais fácil do que vangloriar-se da fé e de uma consciência íntegra, porém são
mui poucos os que comprovam por meio de seus atos que estão isentos de toda
sombra de hipocrisia. Devemos notar especialmente como ele fala da fé sem fingimento, significando que é
insincera qualquer profissão de fé que não se pode comprovar por uma
consciência íntegra e manifestar-se no amor. Visto que a salvação do homem
depende da fé, e a perfeita adoração divina consiste de fé e de uma consciência
integra e de amor, não precisamos sentir-nos surpresos por Paulo dizer que
estes elementos constituem a suma da lei.
Deus nos abençoe!
João Calvino (1509-1564).
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