“EIS QUE VOS DIGO UM MISTÉRIO”
“Isto afirmo,
irmãos, que a carne e o sangue não podem herdar o reino de Deus, nem a
corrupção herdar a incorrupção. Eis que vos digo um mistério: nem todos
dormiremos, mas transformados seremos todos” (1Co 15.50,51).
Ao chegar a
este ponto, o argumento do apóstolo Paulo consistiu de duas partes. Ele demonstrou,
antes de tudo, que haverá ressureição dos mortos; e, em segundo lugar, qual
será a natureza da ressurreição. Mas agora ele prossegue apresentando uma
descrição mais completa de como ela se dará, chamando sua descrição de mistério, visto que não havia a mesma
clareza sobre esta, como no caso dos outros aspetos, na ausência, até aqui, de
qualquer revelação de Deus sobre o assunto. Paulo procede assim a fim de levá-los
a prestar mais atenção ao que tem a dizer. Ao fazer uso do termo “mistério”, ele
está a adverti-los de que estão se tornando familiarizados com algo sobre o
qual não só não sabem nada, mas também que deve ser considerado como parte dos
segredos celestiais de Deus.
Nem todos dormiremos. Não há
variante nos manuscritos gregos, mas há três redações diferentes no latim. A
primeira é: “Na verdade todos morreremos, mas nem todos seremos transformados”.
A segunda é: “Na verdade todos ressuscitaremos, mas nem todos seremos
transformados”. A terceira é: “Certamente, nem todos dormiremos, mas todos
seremos transformados”. Minha conjectura é que estas diferenças são oriundas do
fato de que alguns revisores, sendo um tanto obtusos, e achando a redação
genuína um tanto inconsistente, tomaram a iniciativa de substituí-la pela que
entendiam se a mais provável. Porque, em face da dificuldade, parecia-lhes
inconveniente que “nem todos morreremos”, quando Hebreus 9.27 afirma que “aos
homens está determinado morrerem uma vez”. Portanto, o alteraram para que
significasse “nem todos seremos transformados”, e ainda que “todos
ressuscitaremos”, ou “todos morreremos”, e ser transformados, para eles,
significa a glória que somente os filhos de Deus receberão. Porém, à luz do
contexto, podemos decidir qual é a redação genuína.
O propósito de
Paulo é explicar o que já havia dito, ou seja, que seremos feitos semelhantes a
Cristo, porque “carne e sangue não podem herdar o reino de Deus”. Mas isto
suscita a seguinte pergunta: qual, pois, será o destino daqueles que estiverem
vivos quando o Dia do Senhor chegar? Paulo responde que, embora não morram, não
obstante serão todos renovados, para que a mortalidade e a corrupção sejam
destruídas. Notemos, porém, que ele está falando somente dos crentes; porque,
ainda que haverá ressurreição, e até mesmo transformação dos incrédulos,
todavia, diante do fato de que são passados em silêncio aqui, devemos entender
tudo o que ficou dito como aplicando-se exclusivamente aos eleitos. Agora
percebemos o quanto esta frase se ajusta à precedente, porque, havendo dito que
levaremos a imagem de Cristo, ele agora esclarece que tal se dará quando formos
transformados, para que o que é mortal seja absorvido pela vida, e também mostra
que não se fará nenhuma diferença nesta transformação, que a vinda de Cristo
alcançará alguns que ainda estarão vivos naquele tempo.
Mas ainda
temos que encontrar uma solução para o problema de que “está determinado que
todos os homens morram”; e de fato esta não é uma tarefa difícil. Visto que a transformação
não pode acontecer sem a destruição da natureza que existia previamente, e tal transformação
é corretamente considerada como uma espécie de morte; porém, visto que não há
separação entre a alma e corpo, esta não deve ser imaginada como sendo uma
morte ordinária. Será morte no sentido em que nossa natureza corruptível será
destruída; não será adormecimento, visto que a alma não se separará do corpo;
mas haverá uma súbita transição de nossa natureza corruptível para a
bem-aventurada imortalidade.
Deus nos
abençoe!
João Calvino (1509-1564).
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