“MINHA BENEFICÊNCIA NÃO TE ALCANÇA”
“Dirás ao
SENHOR: Tu és o meu SENHOR; minha beneficência não te alcança” (Sl 16.2).
Davi começa
afirmando que ele não pode dar nada a Deus, não só porque Deus não tem
necessidade de coisa alguma, mas também porque o homem mortal não pode merecer
o favor divino por algum serviço que porventura venha a realizar para Deus. Ao
mesmo tempo, contudo, ele toma alento e, visto que Deus aceita nossa devoção e
o serviço que a ele dedicamos, Davi declara que será um de seus servos. A fim
de reanimar-se o mais eficazmente possível para o exercício desse dever, ele
fala à sua própria alma; pois a palavra hebraica que se traduz por dirás é do gênero feminino, a qual pode
referir-se somente à alma. Talvez alguns prefiram ler a palavra no pretérito: Tu disseste, o que acho perfeito, pois o
salmista está falando de um sentimento que tinha sido acalentado continuamente
em sua alma. Estou deveras convencido em meu coração de que a substância de sua
linguagem é que Deus não pode extrair proveito ou tirar vantagem de mim; não
obstante isso, unir-me-ei em comunhão com os santos, para que de comum acordo
adoremos a Deus por meio de sacrifícios de louvor.
Duas coisas
são distintamente estabelecidas neste versículo. A primeira é que Deus tem o
direito de requerer de nós o que lhe apraz, visto que estamos totalmente
ligados a ele como nosso legítimo Proprietário e Senhor. Davi, ao atribuir-lhe
o poder e o domínio de Senhor, declara
que tanto ele mesmo quanto tudo o que ele possuía são propriedades de Deus. O outro
particular contido neste versículo é o reconhecimento que o salmista tinha de
sua própria indigência.
Minha
beneficência não te alcança. Os
intérpretes explicam essa última cláusula de duas maneiras. Alguns extraem dela
este sentido, a saber: que Deus sob nenhuma obrigação, ou, no mínimo grau, não
nos deve algo pelos feitos bons que praticamos para ele; e entendem o termo beneficência num sentido passivo, como
se Davi afirmasse que toda bondade que ele recebia de Deus não procedia de
alguma obrigação que ele impusesse a Deus, nem de algum mérito que porventura
possuísse. Creio, porém, que a frase tem um significado mais extenso, ou seja, por
mais que os homens se esforcem por sempre depender de Deus, não obstante isso
não lhe proporciona nenhuma vantagem. Nossa beneficência não chega a ele, não
só porque, possuindo toda auto-suficiência, ele não necessita de coisa alguma, mas
também porque somos vazios e destituídos de todo bem e nada temos como
demonstrar-lhe nossa liberalidade para com ele. À luz dessa doutrina, contudo,
o outro ponto sobre o qual toquei antes se seguirá, ou seja, que é impossível
para os homens, por quaisquer méritos propriamente seus, fazerem Deus
obrigar-se em relação a eles, de modo a torná-lo seu devedor. A suma do
discurso é que, quando chegamos diante de Deus, devemos desvencilhar-nos de
toda e qualquer presunção. Quando imaginamos haver algum bem em nós, não carecemos
de ficar surpresos se ele nos rejeitar, como se, com isso, estivéssemos despojando-o
da parte principal da honra que lhe é devida. Mas, ao contrário, se
reconhecermos que todos os serviços que podemos prestar-lhe em si mesmos nada
são, e são indignos de qualquer recompensa, essa humildade é como um aroma de
suave cheiro, que alcança para si aceitação diante de Deus.
Deus nos
abençoe!
João Calvino (1509-1564).
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