“QUANTO AOS SANTOS QUE ESTÃO NA TERRA”
“Quanto aos santos que estão na terra, e os excelentes, neles está todo o
meu deleite” (Sl 16.3).
Quase todos concordam em tomar esse lugar como se Davi, depois da frase
que estivemos justamente considerando, acrescentasse: A única forma de servir a
Deus corretamente é sem demora fazendo o bem a seus santos servos. E a verdade
é que Deus, já que nossas boas ações não chegam a ele, coloca os santos em seu
lugar, em favor de quem devemos exercer nossa caridade. Quando os homens, pois,
mutuamente se esforçam em fazer o bem uns aos outros, isso equivale a dedicar a
Deus um serviço justo e aceitável. Sem dúvida, devemos estender nossa caridade
mesmo aos que dela são indignos, precisamente como nosso Pai celestial “faz seu
sol nascer sobre os maus e os bons” [Mt 5.45]. Davi, porém, com razão prefere
os santos a quaisquer outros, e os coloca numa categoria mais proeminente.
Essa, pois, como me expressei no início, é a opinião comum de quase todos os
intérpretes. Mas ainda que eu não negue que esta doutrina esta compreendida nas
palavras de Davi, creio que eu avanço um tanto mais, e afirmo que ele se unirá
com os devotos adoradores de Deus, os quais são seus associados e companheiros,
ainda quando todos os filhos de Deus devam estar unidos pelos laços da união
fraternal, a fim de que todos sejam qualificados a servir e a invocar a seu Pai
comum com a mesma afeição e zelo. E assim vemos que Davi, depois de ter
confessado que não podia encontrar nada em si para oferecer a Deus, visto estar
endividado para com ele por tudo quanto possuía, deposita sua afeição nos
santos, porquanto é a vontade de Deus que, neste mundo, seja ele magnificado e
exaltado na assembleia dos justos, aos quais ele adotou em sua família com esse
propósito, ou seja, para que vivam unidos em comum acordo sob sua autoridade e
sob as diretrizes do Espírito Santo.
Esta passagem, pois, nos ensina que não há sacrifício mais aceitável a
Deus do que quando sincera e honestamente nos unimos à sociedade dos justos e
nos entrelaçamos pelos sagrados laços da piedade, cultivando e mantendo com
eles a boa vontade fraternal. Nisso consiste a comunhão dos santos, a qual os
separa das degradantes poluições do mundo, a fim de que sejam o povo santo e
peculiar de Deus. Ele expressamente fala de os santos que estão na
terra, visto que é a vontade de Deus que, mesmo neste mundo, haja
aquelas claras marcas - como se fossem brasões visíveis - de sua glória, as
quais sirvam para conduzir-nos a ele. Os fiéis, pois, levam sua imagem para
que, mediante seu exemplo, sejam incitados à meditação sobre a vida celestial.
Pela mesma razão, o salmista os chama, excelentes, ou nobres,
porquanto não deve haver nada mais precioso para nós do que a justiça e a
santidade, nas quais resplandece a glória do Espírito de Deus; precisamente
como somos concitados no Salmo anterior a dar valor e prestigiar aos que temem
a Deus.
Devemos, pois, valorizar e apreciar de forma sublime os genuínos e
devotados servos de Deus, e não considerar nada mais importante do que nossa
participação de sua sociedade. E isso realmente faremos se sabiamente
refletirmos sobre em que consiste a genuína excelência e dignidade e não
permitir que o vão esplendor do mundo e suas pompas ilusórias ofusquem nossos
olhos.
Deus nos abençoe!
João Calvino (1509-1564).
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