“DEUS O EXALTOU SOBREMANEIRA”
“Pelo que
também Deus o exaltou sobremaneira e lhe deu o nome que está acima de todo nome”
(Fp 2.9).
Pelo que também
Deus o exaltou sobremaneira. Não se achará
ninguém, é verdade, que reconheça ser algo racional o que nos é requerido,
quando somos exortados a imitar a Cristo. Esta consideração, contudo, nos
estimula a imitá-lo com todo entusiasmo, quando aprendemos que nada nos é mais
vantajoso do que nos conformarmos à sua imagem. Ora, é feliz todo aquele que,
juntamente com Cristo, voluntariamente se humilha; e ele mesmo o demonstra com
seu exemplo; porque, da condição mui desprezível ele foi exaltado a uma elevação
suprema. Portanto, todo aquele que se humilha será de modo semelhante exaltado.
Ora, quem se sentirá relutante em exercer humildade, por meio da qual se obtém
a glória do reino celestial?
Esta passagem
tem propiciado ocasião aos sofistas, ou, melhor, eles têm se assenhoreado dela,
para alegarem que Cristo veio para granjear mérito, primeiramente para si
mesmo, e depois para outros. Ora, em primeiro lugar, mesmo que nada houvesse de
falso nesta alegação, não obstante seria oportuno evitar tais especulações
profanas que obscurecem a graça de Cristo - imaginar que ele veio por qualquer
outra razão e não com vistas à nossa salvação. Quem não percebe ser esta uma sugestão
de Satanás - que Cristo sofreu no madeiro com o fim de adquirir para si, pelo mérito
de sua obra, o que ainda não possuía? Pois o desígnio do Espírito Santo é que nós,
na morte de Cristo, nada vemos, provamos, ponderamos, sentimos e reconhecemos
senão a pura bondade de Deus, e o amor de Cristo para conosco, o qual era tão
imenso e inestimável, que, desconsiderando a si próprio, devotou a si e a sua
vida para nosso bem. Em todo transe em que as Escrituras falam da morte de
Cristo, elas nos assinalam sua vantagem e preço: que, por meio dela, somos
redimidos; reconciliados com Deus; restaurados à justiça; purificados de nossas
poluições; a vida nos é conquistada e os portões da vida, abertos. Quem, pois,
negaria ser por instigação de Satanás que as pessoas referidas mantêm, em
contrapartida, que a parte principal da vantagem está em Cristo mesmo - que em
consideração a si próprio ele manteve a precedência daquilo que tinha para nós;
que ele mereceu para si glória antes de merecer-nos salvação?
Ademais, nego
a veracidade do que alegam, e mantenho que as palavras de Paulo são impiamente
pervertidas para alegar sua falsidade; porquanto a expressão, por
esta causa, denota, aqui, uma consequência, antes que uma razão, e se
manifesta disto: que de outro modo se seguiria que um homem poderia merecer
honras divinas e adquirir o próprio trono de Deus - o que é não meramente
absurdo, mas inclusive medonho até mesmo de mencionar. Pois, de que exaltação
de Cristo o apóstolo fala aqui? É que tudo quanto fosse realizado nele, Deus,
pelo profeta Isaías, reivindica exclusivamente para si. Daí a glória de Deus, e
a majestade, que lhe é tão peculiar, que não podem ser transferidas a nenhum
outro, serão recompensa de esforço humano!
Uma vez mais,
se insistem no modo de expressão, sem qualquer consideração ao absurdo que
seguirá, a resposta será fácil - que ele nos foi dado pelo Pai de maneira tal
que toda sua vida é como um espelho que é posto diante de nós. Como, pois, um
espelho, ainda que tenha esplendor, não o tem de si próprio, mas com vistas a
ser vantajoso e proveitoso a outros; assim Cristo não buscou nem recebeu nada
para si mesmo, mas tudo para nós. Pois que necessidade, pergunto, tinha ele,
que era igual ao Pai, de uma nova exaltação? Então, que os leitores piedosos
aprendam a detestar os sofistas de Sorbonne com suas especulações pervertidas.
E lhe deu um
nome. Aqui, emprega-se nome no sentido
de dignidade. Portanto, o significado é que foi dado a Cristo o poder supremo,
e que ele foi posto na mais elevada posição de honra, de modo que não se acha
dignidade, seja no céu, seja na terra, que seja igual à dele. Daí se segue que
o mesmo é um nome divino. Ele explica isto também citando as palavras de Isaías,
onde o profeta, ao tratar da propagação do culto divino por todo o orbe,
apresenta Deus falando assim: “Diante de mim se dobrará todo joelho, e jurará
toda língua” [Is 45.23].
Deus nos abençoe!
João Calvino (1509-1564).
Nenhum comentário:
Postar um comentário