“TENDE EM VÓS O MESMO SENTIMENTO QUE HOUVE TAMBÉM EM CRISTO JESUS”
“Tende em vós
o mesmo sentimento que houve também em Cristo Jesus, pois ele, subsistindo em
forma de Deus, não julgou como usurpação o ser igual a Deus” (Fp 2.5,6).
O apóstolo Paulo agora recomenda, com
base no exemplo de Cristo, o exercício da humildade, à qual ele os exortou em
palavras. Entretanto, há duas etapas: na primeira, ele nos convida a imitarmos
a Cristo, porque esta é a norma da vida; na segunda, ele nos atrai para essa norma,
porque esta é a estrada pela qual tomamos posse da verdadeira glória. Daí ele
exortar a cada pessoa a cultivar a mesma disposição que houve em Cristo. Em
seguida, ele mostra qual é o padrão da humildade exibido em Cristo à nossa vista.
Ele, subsistindo em forma de Deus. Esta não é uma comparação entre
coisas semelhantes, mas sim algo como “maior e menor”. A humildade de Cristo
consistiu em ele descer, do pináculo mais elevado de glória à ignomínia mais
baixa; nossa humildade consiste em refrear-nos de uma exaltação egoísta por uma
falsa estima. Ele renunciou ao seu direito; tudo o que se requer de nós é que
não assumamos para nós mesmos mais do que devemos. Daí ele especificar isto:
que, “Ele, subsistindo na forma de Deus, não considerou o ser igual a Deus como
coisa a que se devia apegar; mas a si mesmo se esvaziou”. Visto, pois, que o
Filho de Deus desceu
de uma altitude tão
imensa, quão irracional seria que nós, que nada somos, tentássemos nos
exaltar tão orgulhosamente!
Aqui, a forma de Deus representa sua majestade. Pois como um homem é conhecido pela aparência
de sua forma, assim a majestade, que resplandece em Deus, é sua figura. Ou, se
você preferir uma figura mais apropriada, a forma de um rei é sua equipagem e magnificência,
o que o exibe como rei - seu cetro, sua coroa, sua vestimenta, seus
assistentes, seu tribunal e outros emblemas de realeza; a forma de um cônsul
era sua longa túnica, bordada de púrpura, seu trono de marfim, seus litores com
bordões e machadinhas. Cristo, pois, antes da criação do mundo, subsistia na
forma de
Deus, porque desde
o princípio ele possuía sua glória junto com o Pai, como ele diz em João
17.5. Porque, na sabedoria de Deus, antes de assumir nossa carne, não havia
nada que fosse humilde ou desprezível; mas, ao contrário, havia uma
magnificência digna de Deus. Subsistindo tal como era, ele pôde, sem fazer
injustiça a ninguém, exibir-se como igual a Deus; mas ele não se manifestou
como sendo o que realmente era, nem assumiu publicamente à vista dos homens o
que lhe pertencia por direito.
Não considerou como usurpação. Não teria havido erro algum caso
tivesse exibido sua igualdade com Deus. Pois quando diz: ele não considerou, é como
se dissesse: “De fato ele sabia que isso lhe era legítimo e um direito”, para
que saibamos que seu aviltamento foi voluntário, não por necessidade. Até aqui
a tradução foi feita no indicativo - ele considerou -, mas a conexão requer o
subjuntivo. É também algo bem costumeiro Paulo empregar o pretérito do
indicativo no lugar do subjuntivo - como, por exemplo, em Romanos 9.3, “pois eu
teria desejado”; e em 1Coríntios 2.8, “se tivessem conhecido”. Não obstante,
cada um deve perceber que Paulo até aqui tratou da glória de Cristo, a qual
tende a reforçar seu aviltamento. Consequentemente, ele menciona não o que o
Cristo fez, mas o que lhe era lícito fazer.
Mais do que isso: aquele que não
perceber que a eterna divindade [de Cristo] se expressa com clareza nessas
palavras está completamente cego! Tão pouco Erasmo age com a modéstia que
deveria ao tentar, por meio de suas picuinhas, modificar esta passagem, bem como
outras passagens semelhantes. De fato ele reconhece, por toda parte, que Cristo
é Deus; mas de que me aproveita tal confissão ortodoxa se minha fé não for
sustentada por alguma autoridade bíblica? Por certo que reconheço que Paulo não
faz menção, aqui, da essência divina de Cristo; mas disto não se segue que a
passagem não seja suficiente para repelir a impiedade dos arianos, que
pretendiam que Cristo fosse um Deus criado e inferior ao Pai, e que negavam que
ele era consubstancial. Ora, será que pode haver igualdade com Deus sem
usurpação, se não houver necessariamente também a essência de Deus? É Isaías quem afirma que Deus sempre
permanece o mesmo: “Minha glória não a darei a outrem” [Is 48.11]. Forma significa
figura ou aparência, como comumente se fala. Prontamente admito isso também;
mas é possível encontrar, senão em Deus, tal forma, sem que seja ou falsa ou
forjada? Assim, do mesmo jeito que Deus é conhecido por meio de suas
excelências e que suas obras evidenciam sua eterna Deidade [Rm 1.20], a
essência divina de Cristo é demonstrada claramente na majestade de Cristo, a
qual ele possuía igualmente com o Pai, antes mesmo de se humilhar. No que me
diz respeito, pelo menos, nem ainda todos os demônios adulterariam esta passagem,
já que há
em Deus um argumento bem sólido,
a partir de sua glória para sua essência, as quais são duas coisas
inseparáveis.
Deus nos abençoe!
João Calvino (1509-1564).
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