“DISSE DEUS: FAÇAMOS O HOMEM À NOSSA IMAGEM”
“Também disse
Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança; tenha ele
domínio sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus, sobre os animais
domésticos, sobre toda a terra e sobre todos os répteis que rastejam pela terra”
(Gn 1.26).
Os intérpretes
não unânimes no que se refere ao significado dessas palavras. A grande maioria
acredita que a palavra imagem deva
ser distinguida de semelhança. E a distinção comum é que imagem existe na
substância; semelhança, nos acidentes
de alguma coisa. Os que preferem definir o tema de modo breve, dizem que na imagem
estão contidos aqueles dotes que Deus conferiu à natureza humana em geral,
enquanto explicam semelhança no
sentido dos dons gratuitos. Agostinho, porém, além de todos os outros, especula
com excessivo refinamento, com o propósito de projetar uma trindade no homem.
Pois, ao valer-se das três faculdades da alma enumeradas por Aristóteles: o
intelecto, a memória e a vontade, ele deriva delas muitas outras. De fato, reconheço que há algo no homem que
se reporta ao Pai, ao Filho e ao Espírito; e não tenho dificuldade em admitir a
distinção das faculdades da alma feita acima; embora a divisão mais simples em
duas partes, que é usada na Escritura, seja mais adaptada à sã doutrina da
piedade; mas uma definição de imagem de Deus deve repousar sobre uma base mais
sólida do que em tais sutilezas.
No que diz
respeito, antes de definir a imagem
de Deus, negaria que ela difira de sua semelhança.
Pois quando Moisés, mais adiante, repete a mesma coisa, ele ignora a semelhança e se contenta em mencionar
apenas a imagem. Alguém poderia
replicar dizendo que ele estava meramente buscando brevidade; a isso eu
respondo que, onde ele usa duas vezes a palavra imagem, não faz menção da semelhança.
Sabemos ainda que era comum entre os hebreus repetirem a mesma coisa em
diferentes palavras. Além disso, a frase em si mostra que o segundo termo foi
acrescido como explicação. “Façamos”, diz ele, “o homem à nossa imagem,
conforme a nossa semelhança”, isto é, para que ele seja semelhante a Deus, ou
possa representar a imagem de Deus.
Finalmente, no
quinto capítulo, sem fazer qualquer menção de imagem, ele põe semelhança
em seu lugar [Gn 5.1]. Mesmo que tenhamos descartado toda e qualquer diferença entre
as duas palavras, ainda não averiguamos o que é essa imagem e semelhança. Os antropomorfistas
foram demasiadamente grosseiros em buscar essa semelhança no corpo humano; que
tal desvario, portanto, permaneça sepultado. Outros procedem um pouco mais
sutilmente, a saber, ainda que não imaginem Deus como sendo corpóreo, contudo
sustentam que a imagem de Deus está no corpo do homem, porque sua admirável
estrutura brilha aí fulgurantemente. Essa opinião, porém, como veremos, não
está de forma alguma em concordância com a Escritura. A exposição de Crisóstomo
é mais correta, o qual se reporta ao domínio que ao homem foi dado a fim de
poder, em certo sentido, agir como vice-regente de Deus no governo do mundo.
Essa, realmente, é alguma parte, ainda que muito pequena, da imagem de Deus.
Posto que a
imagem de Deus foi em nós destruída pela queda, podemos julgar, a partir de sua
restauração, o que ela fora originalmente. Paulo diz que, pelo evangelho, somos
transformados na imagem de Deus. E, segundo ele, a regeneração espiritual nada
mais é do que a restauração da mesma imagem [Cl 3.10; Ef 4.23]. É mediante a
figura de sinédoque que ele fez essa
imagem consistir em “justiça e verdadeira santidade”; pois ainda que essa seja a
parte principal, não é o todo da imagem de Deus. Portanto, por essa palavra se
designa a perfeição de toda nossa natureza, como apareceu quando Adão foi
dotado com um reto juízo, quando tinha os afetos em harmonia com a razão, tinha
todos os seus sentidos íntegros e bem regulados, e realmente se sobressaia em tudo
o que é bom. Assim, a principal sede da imagem divina esta em sua mente e
coração, onde ela era eminente; contudo, não havia parte dele em que não
refulgissem algumas cintilações dela. Pois havia um equilíbrio nas diversas
partes da alma que correspondia aos seus vários ofícios. Na mente florescia e
reinava perfeita inteligência, a retidão estava presente como sua companheira,
e todos os sentidos estavam preparados e moldados para devida obediência à
razão; e no corpo havia uma correspondência própria a essa ordem interior.
Agora, porém, embora alguns obscuros delineamentos dessa imagem se encontram
permanentes em nós, contudo, se encontram tão viciados e mutilados, que se pode
dizer com razão que estão destruídos. Pois além da deformidade que por toda
parte parece repugnante, acrescenta-se também este mal: que nenhuma parte está
isenta da infecção do pecado.
Deus nos
abençoe!
João Calvino (1509-1564).
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