“TENDO O DESEJO DE PARTIR E ESTAR COM CRISTO”
“Ora, de um e
outro lado, estou constrangido, tendo o desejo de partir e estar com Cristo, o
que é incomparavelmente melhor” (Fp 1.23).
Ora, de um e
outro lado, estou constrangido. O apóstolo
Paulo não deseja viver com nenhum outro objetivo em vista senão a promoção da
glória de Cristo, e fazer o bem aos irmãos. Daí ele enxergar nenhuma outra
vantagem em viver senão o bem-estar dos irmãos. Mas, no que diz respeito a si
mesmo, ele reconhece que lhe seria preferível morrer logo, visto que [nesse
caso] passaria a estar com Cristo. Apesar disso, por sua escolha ele
revela que ardente amor havia em seu coração. Aqui nada se diz sobre vantagens
terrenas, mas sobre benefício espiritual, o qual é um motivo supremamente desejável
aos olhos dos santos. Entretanto, como se esquecesse de si mesmo, ele não só se
mantém indeciso, para que não levasse em conta seu próprio benefício, e sim o
dos filipenses, mas, por fim, conclui que em sua mente devia vencer o interesse
deles. E, com toda certeza, isto é na verdade viver ou morrer para Cristo,
quando, sendo indiferente em relação a nós mesmos, nos deixemos ser levados
aonde quer que Cristo nos chame e, ali, usados.
Tendo o desejo
de partir e [de] estar com Cristo. Estas duas
coisas têm de ser lidas em conexão. Pois a morte, por si só, nunca será desejável,
uma vez que tal desejo se opõe ao sentimento natural, porém, é desejável por
alguma razão particular, ou com vistas a algum outro fim. Pessoas em desespero
têm recorrido a ela por se sentirem cansadas da vida; os crentes, por sua vez,
espontaneamente se apressam para ela, pois [isso] representa um livramento da
servidão do pecado e [também] o ingresso no reino celestial. Ora, o que Paulo
diz é o seguinte: “Desejo morrer, porque quero, por esse meio, entrar
imediatamente na comunhão com Cristo.” Entrementes, os crentes não deixam de
encarar a morte com horror, mas quando volvem seus olhos para aquela vida que
segue a morte, vencem com facilidade todo medo em virtude dessa consolação.
Inquestionavelmente, todo aquele que crê em Cristo deve ser de tal modo
corajoso que erga sua cabeça ante a menção da morte, com o coração cheio
de alegria só de tomar consciência de sua redenção [Lc 21.28]. A partir
deste fato notamos quantos são os cristãos nominais, visto que a maioria, ao
ouvir fazer-se menção da morte, fica não só alarmada, mas se sente quase que
desfalecida de medo, como se nunca tivesse ouvido sequer uma palavra sobre
Cristo. Quão preciosa e valiosa é uma boa consciência! Ora, a fé é o fundamento
de uma boa consciência; não só isso, ela é a própria bondade da consciência.
Partir. É preciso notar bem esta forma de expressão. As pessoas
profanas falam da morte como sendo a destruição do homem, como se este
perecesse completamente. Aqui, Paulo nos lembra que a morte é a separação entre
a alma e o corpo. E ele expressa isso mais plenamente logo a seguir, explicando
que condição aguarda os crentes após a morte - habitação com Cristo. Estamos
com Cristo mesmo nesta vida, visto que o reino de Deus está dentro de nós [Lc
17.21], e Cristo habita em nós pela fé [Ef 3.17], e prometeu que estará conosco
até o fim do mundo [Mt 28.20], mas desfrutamos dessa presença só em esperança.
Daí, quanto ao nosso sentimento, é-nos informado que, no tocante à presença,
estamos longe dele [cf. 2C0 5.6]. Esta passagem é muito útil para afastar a
fantasia tola daqueles que sonham que as almas dormem assim que se separam do
corpo, pois o apóstolo declara francamente que desfrutamos da presença de
Cristo assim que nos livramos do corpo.
Deus nos abençoe!
João Calvino (1509-1564).
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