“O QUARTO
MANDAMENTO”
“Lembra-te do dia de sábado, para o santificar. Seis dias
trabalharás e farás toda a tua obra. Mas o sétimo dia é o sábado do SENHOR, teu
Deus; não farás nenhum trabalho, nem tu, nem o teu filho, nem a tua filha, nem
o teu servo, nem a tua serva, nem o teu animal, nem o forasteiro das tuas
portas para dentro; porque, em seis dias, fez o SENHOR os céus e a terra, o mar
e tudo o que neles há e, ao sétimo dia, descansou; por isso, o SENHOR abençoou
o dia de sábado e o santificou” [Êx 20.8-11].
1. TEOR E
APLICAÇÃO DO QUARTO MANDAMENTO
O fim deste
mandamento é que, mortos para nossos próprios interesses e obras,
meditemos no Reino de Deus e a essa meditação nos apliquemos com os meios por
ele estabelecidos. Contudo, uma vez que tem este mandamento uma
consideração peculiar e distinta dos outros, requer ele ordem de
exposição um pouco diferente. Costumam os antigos chamá-lo um mandamento prefigurativo,
porque contém a observância externa de um dia, a qual foi abolida, com as
demais figuras, na vinda de Cristo, o que certamente é por eles dito com
verdade, mas ferem a questão apenas pela metade. Por isso tem-se de buscar uma
exposição mais profunda e levar em consideração três causas pelas quais, a mim me
parece ficar patente, eles têm observado este mandamento. Primeira,
pois o celeste Legislador quis que sob o descanso do dia sétimo prefigurasse ao
povo de Israel um repouso espiritual, pelo qual devem os fiéis descansar de suas
próprias atividades para que deixem Deus neles operar. Segunda, quis ele
que um dia fosse estabelecido no qual se reunissem para ouvir a lei e
realizar os atos de culto, ou, pelo menos, o qual consagrassem particularmente
à meditação de suas obras, de sorte que, por esta rememoração, fossem
exercitados à piedade. Terceira, ordenou um dia de repouso no qual se
concedesse aos servos e aos que vivem sob o domínio de outros para que tivessem
alguma relaxação de seu labor.
2. A
IMPORTÂNCIA DO SÁBADO E SEU SENTIDO ESPIRITUAL
Contudo, somos
ensinados em muitas passagens que essa prefiguração do descanso espiritual teve
o lugar principal no sábado. Com efeito, de quase nenhum mandamento mais
severamente o Senhor exige obediência. Quando, nos profetas, quer dar a
entender que toda a religião está subvertida, queixa-se Deus de que seus
sábados foram profanados, violados, não observados, não santificados,
como se, posta de lado esta deferência, nada mais restasse em que pudesse ser
honrado [Is 56.2; Jr 17.21-23, 27; Êx 20.12, 13; 22.8; 23.38]. A observância
cumula-lhe os mais sublimados encômios, donde também os fiéis, entre os demais
oráculos, estimavam sobremaneira a revelação do sábado. Pois assim falam os
levitas em Neemias [9.14], na assembleia solene: “Deste a conhecer a nossos
pais teu santo sábado; mandamentos, e cerimônias, e a lei lhes deste pela mão
de Moisés.” Vês como o sábado é tido de singular dignidade entre todos
os mandamentos da lei. Estes preceitos todos servem para exaltar a
dignidade do mistério, que é mui esplendidamente expresso por Moisés e
Ezequiel. Assim tens no Êxodo [31.13, 14, 16, 17a]: “Vede que guardeis meu
sábado, porque é um sinal entre mim e vós, em vossas gerações, para que saibais
que Eu sou o Senhor, que vos santifico. Guardai o sábado, pois ele é
santo para vós.” “Guardem o sábado os filhos de Israel, e o celebrem em suas
gerações; é um pacto sempiterno entre mim e os filhos de Israel, e um sinal
perpétuo.” Ora, ainda mais destacadamente o reitera Ezequiel, cuja suma,
entretanto, é esta: que o sábado fosse por sinal pelo qual Israel pudesse
conhecer que Deus lhe era o santificador [Ez 20.12]. Se nossa santificação se
patenteia na mortificação da própria vontade, então mui adequada
correspondência se oferece do sinal externo com a própria realidade interior.
Importa que nos desativemos totalmente, para que Deus opere em nós, abrindo mão
de nossa vontade, resignando o coração, de seus apetites abdicando toda
a carne. Enfim, impõe-se abster-nos de todas as atividades de nosso próprio
entendimento, para que, tendo a Deus operando em nós [Hb 13.21], nele descansemos,
como também o ensina o Apóstolo [Hb 4.9].
3. O SENTIDO
TIPOLÓGICO DO SÉTIMO DIA
A observância
de um dia dentre cada sete representava aos judeus esta cessação perpétua
de atividades, a qual, para que fosse cultivada com religiosidade maior,
o Senhor a recomendou com seu próprio exemplo. Pois é de não somenos
valia para aquecer o zelo do homem que saiba estar trilhando à imitação do
Criador. Se alguém procura algum sentido secreto no número sete, uma vez
que na Escritura este é o número da perfeição, não sem causa foi ele escolhido
para expressar perpetuidade. Ao que também confirma isto: que Moisés põe termo
à descrição da sucessão de dias e noites com o dia em que narra haver o Senhor
descansado de suas obras. Pode-se também apresentar outro significado provável
do número, isto é, que o Senhor assim indicou que o sábado nunca haverá
de ser absoluto até que tenha chegado o último dia. Pois aqui começamos nosso
bem-aventurado descanso nele, descanso em que fazemos diariamente novos
progressos. Mas, porque ainda incessante é a luta com a carne, não se haverá de
consumar antes que se cumpra aquele vaticínio de Isaías [66.23],
enquanto a lua nova for continuada por lua nova, sábado por sábado, até quando,
na verdade, Deus vier a ser tudo em todas as coisas [1Co 15.28]. Portanto, pode
parecer que, mediante o sétimo dia, o Senhor tenha delineado a seu povo a
perfeição futura de seu sábado no Último Dia, a fim de que, pela incessante meditação
do sábado, a esta perfeição aspirasse por toda a vida.
4. CRISTO, O
PLENO CUMPRIMENTO DO SÁBADO
Se a alguém
desagrada esta interpretação do número como sendo por demais sutil, nada impeço
a que a tome em termos mais simples, a saber: que o Senhor estabeleceu
um dia determinado em que o povo se exercitasse, sob a direção da lei, a
meditar na incessabilidade do descanso espiritual; que Deus designou o
sétimo dia, ou porque previa ser o mesmo suficiente para isso, ou
para que, proposta uma imitação de seu exemplo, melhor estimulasse o povo, ou,
na realidade, o exortasse a não atentar para o sábado com outro propósito
senão que o conformasse a seu Criador. Ora, pouco interessa que
interpretação se adote, desde que subsista o mistério que principalmente se
delineia: o referente ao perpétuo descanso de nossos labores. A contemplar
isto, os Profetas reiteradamente revocavam os judeus, para que não pensassem
haver-se desincumbido da obrigação do sábado com a simples cessação
física do trabalho. Além das passagens já referidas, assim tens em
Isaías [58.13, 14]: “Se apartares do sábado teu pé, para que não faças tua
vontade em meu santo dia, e ao sábado chamares deleitoso e o dia santo
do Senhor glorioso, e o glorificares, não seguindo teus caminhos e não fazendo
tua vontade, de sorte que fales tua palavra, então te deleitarás no
Senhor” etc. Mas, não há dúvida de que pela vinda do Senhor Jesus Cristo
o que era aqui cerimonial foi abolido. Pois ele é a verdade, por cuja
presença se desvanecem todas as figuras; o corpo, a cuja visão são deixadas
para trás as sombras. Ele é, digo-o, o verdadeiro cumprimento do sábado.
Com ele, sepultados através do batismo, fomos enxertados na participação de sua
morte, para que, participantes de sua ressurreição, andemos em novidade
de vida [Rm 6.4]. Por isso, escreve o Apóstolo em outro lugar que o sábado tem
sido uma sombra da realidade futura, e que o corpo, isto é, a sólida
substância da verdade, que bem explicou naquela passagem, está em Cristo [Cl
2.17]. Esta não consiste em apenas um dia, mas em todo o curso de nossa vida, até
que, inteiramente mortos para nós mesmos, nos enchamos da vida de Deus. Portanto,
que esteja longe dos cristãos a observância supersticiosa de dias.
5. AINDA QUE
CANCELADO, HÁ NO SÁBADO ASPECTOS VIGENTES
Com efeito,
por isso é que nas velhas sombras não se devem numerar as duas causas
posteriores que se enfeixam neste mandamento; ao contrário, convêm elas,
igualmente, em todos os séculos, ainda que o sábado esteja cancelado, entre
nós, não obstante, ainda tem lugar isto: primeiro, que nos congreguemos
em dias determinados para ouvir a Palavra, para partir o pão místico, para as
orações públicas; segundo, para que se dê aos servos e aos operários relaxação
de seu labor. Paira além de dúvida que, na preceituação do sábado, o Senhor
teve em mira a ambas. Sobejo testemunho tem a primeira, mesmo que seja só
no uso dos judeus. A segunda gravou-a Moisés no Deuteronômio, nestas palavras:
“Para que descanse teu servo, e tua serva, assim como também tu; lembra-te de
que também tu mesmo foste servo no Egito” [Dt 5.14, 15]. De igual modo, no
Êxodo: “Para que descanse teu boi e teu jumento e tome alento o filho de
tua serva” [Êx 23.l2]. Quem há de negar que uma e outra nos convém, exatamente
como convinha aos judeus? Reuniões de Igreja nos são preceituadas pela
Palavra de Deus, e sua necessidade nos é suficientemente assinalada pela
própria experiência da vida. Como se podem elas realizar, a não ser que
tenham sido promulgadas e tenham seus dias estabelecidos? Segundo a postulação
do Apóstolo [1Co 14.40], todas as coisas entre nós devem ser feitas
decentemente e com ordem. Tão longe, porém, está de que se possa conservar a
decência e a ordem, a não ser mediante esta organização e regularidade, as
quais, se se desfazem, sobre a Igreja pairam mui presente perturbação e ruína. Pois
se a mesma necessidade pesa sobre nós, em socorro da qual o Senhor constituíra o
sábado para os judeus, ninguém alegue que ele não nos diz respeito. Ora, nosso providentíssimo
e indulgentíssimo Pai quis prover à nossa necessidade, não menos que à dos
judeus. Por que, dirás, não nos congregamos antes diariamente, de sorte que,
dessa forma, se ponha termo à distinção de dias? Prouvera que, de fato, isto se
nos concedesse! E, por certo, a sabedoria espiritual era digna de que se
lhe reservasse diariamente alguma porçãozinha do tempo. Mas, se pela fraqueza
de muitos não se pode conseguir que se realizem reuniões diárias, e a norma da
caridade não permite deles exigir mais, por que não obedeçamos à norma que nos
foi imposta pela vontade de Deus?
6. O ESPÍRITO
E FUNÇÃO DA OBSERVÂNCIA DO DOMINGO
Sou compelido
a estender-me um pouco mais aqui, porque alguns espíritos inquietos estão hoje
a causar tumulto por causa do Dia do Senhor. Acusam o povo cristão de ser
nutrido no judaísmo, porquanto retém certa observância de dias. Eu, porém,
respondo que estes dias são por nós observados aquém do judaísmo, porque nesta
matéria diferimos dos judeus por larga diferença. Pois, não o celebramos
como uma cerimônia revestida com a mais estrita religiosidade, pela qual
pensamos representar-se um mistério espiritual. Pelo contrário, tomamo-lo como
um remédio necessário para reter-se ordem na Igreja. Ademais, Paulo ensina que
os cristãos não devem ser julgados por sua observância, uma vez ser ela mera
sombra da realidade futura [Cl 2.16, 17]. Por isso, arreceia-se de que haja
trabalhado em vão entre os gálatas, porque ainda observavam dias [G1 4.10, 11].
E aos romanos declara ser supersticioso se alguém julga entre dia e dia [Rm
14.5]. Quem, entretanto, exceto estes desvairados somente, não vê que
observância o Apóstolo tinha em mente? Pois, aqueles a quem se dirigia não
contemplavam neste propósito a ordem política e eclesiástica; antes, como
retivessem os sábados e dias de guarda como sombras das coisas
espirituais, obscureciam em extensão correspondente a glória de Cristo e a luz
do evangelho. Abstinham-se dos labores manuais não por outra razão senão para
que fossem embaraços aos sacros estudos e meditações; e assim, com uma certa
devoção, sonhavam que, ao observá-lo, estavam a rememorar mistérios dantes
recomendados. Contra esta antagônica distinção de dias, digo-o, investe o
Apóstolo, não contra a legítima opção que serve à paz da sociedade cristã. Com
efeito, nas igrejas por ele estabelecidas, o sábado era mantido para este
propósito. Ora, prescreve ele esse dia aos coríntios, para que se
coletem ofertas a fim de serem socorridos os irmãos hierosolimitanos [1Co
16.2]. Se porventura se teme superstição, muito mais perigo havia nos
dias de guarda judaicos, nos dias do Senhor, do que agora observam os cristãos.
Pois, visto que para suprimir-se a superstição se impunha isto, foi abolido o
dia sagrado observado pelos judeus; e como era necessário para se conservarem o
decoro, a ordem e a paz na Igreja, designou-se outro dia, o domingo para
este fim.
7. O GENUÍNO
SENTIDO DO DOMINGO
Contudo, não
foi sem alguma razão que os antigos escolheram o dia do domingo para pô-lo no
lugar do sábado. Ora, como na ressurreição do Senhor está o fim e cumprimento
daquele verdadeiro descanso que o antigo sábado prefigurava, os cristãos são
advertidos pelo próprio dia que pôs termo às sombras a não se apegarem ao cerimonial
envolto em sombras. Nem a tal ponto, contudo, me prendo ao número sete que
obrigue a Igreja à sua servidão, pois nem haverei de condenar as igrejas que tenham
outros dias solenes para suas reuniões, desde que se guardem da superstição. Isto
ocorrerá, se se mantiver a observância da disciplina e da ordem bem regulada. A
síntese do mandamento é: como aos judeus a verdade era comunicada sob prefiguração,
assim ela, em primeiro lugar, nos é outorgada sem sombras, para que por toda a
vida observemos um perpétuo sabatismo de nossos labores, a fim de que o Senhor
em nós opere por seu Espírito; em segundo lugar, para que cada um,
individualmente, sempre que disponha de lazer, se exercite diligentemente na
piedosa reflexão das obras de Deus. Então, ainda, para que todos a um tempo
observemos a legítima ordem da Igreja, constituída para ouvir-se a Palavra,
para a administração dos sacramentos, para as orações públicas. Em terceiro lugar,
para que não oprimamos desumanamente os que nos estão sujeitos. E assim se
desvanecem-se as mentiras dos falsos profetas, os quais, em séculos transatos,
imbuíram o povo de uma opinião judaica, asseverando que nada mais foi cancelado
senão o que era cerimonial neste mandamento, com isto entendem em seu
linguajar a fixação do dia sétimo, mas remanescer o que é moral,
isto é, a observância de um dia na semana. Com efeito, isto outra coisa não
é senão mudar o dia por despeito aos judeus e reter em mente a mesma
santidade do dia, uma vez que ainda nos permanece nos dias sentido de mistério
igual ao que tinha lugar entre os judeus. E de fato vemos que proveito tem
fruído com tal doutrina, pois quantos deles se apegam às estipulações superam
três vezes aos judeus em sua crassa e carnal superstição de sabatismo, de sorte
que as reprimendas que lemos em Isaías [1.13-15; 58.13] nada menos lhes convêm
hoje que àqueles a quem o Profeta increpava em seu tempo. Contudo, importa manter-se,
principalmente, o ensino geral: para que a religião não pereça ou venha
definhar entre nós, devem ser realizadas diligentemente as reuniões sagradas e
deve dar-se atenção aos meios externos que servem para fomentar o culto divino.
João Calvino
(1509-1564).
Deus nos abençoe!
*Agradecemos sua oferta (Pix 08362076291).