“TANTO O QUERER COMO O REALIZAR”
“Porque Deus é
quem efetua em vós tanto o querer como o realizar, segundo a sua boa vontade”
(Fp 2.13).
Este é o
verdadeiro mecanismo que lança por terra toda arrogância - é a espada que põe
fim a todo orgulho, quando aprendemos que somos meramente nada, e nada podemos
fazer, a não ser pela graça de Deus somente. Quero dizer a graça supernatural
que procede do espírito de regeneração. Pois, considerados como meros homens, “só
existimos, vivemos e nos movemos em Deus” [At 17.28]. Aqui, porém, Paulo
raciocina quanto a um tipo de movimento diferente daquele universal.
Observemos agora quanto ele atribui a Deus e quanto ele deixa para nós.
Há, em
qualquer ação, dois departamentos principais - a inclinação e o poder de execução.
Ele atribui totalmente a Deus ambos esses elementos; o que mais nos resta como
base de vangloria? Nem mesmo há alguma razão para se duvidar de que esta divisão
tem a mesma força como se Paulo expressasse tudo numa única palavra; pois a
inclinação é a obra; a realização dela é o topo do edifício levado à completação.
Ele, pois, disse muito mais do que se tivesse dito que Deus é o Autor do “começo”
e do “fim”. Pois, nesse caso, os sofistas teriam alegado, astuciosamente, que o
“meio” foi deixado aos homens. Mas como é possível que descubram aquilo que, em
algum grau, cabe somente a nós [realizar]? Trabalham arduamente em suas escolas
a fim de conciliar o livre-arbítrio com a graça de Deus - [livre-arbítrio],
quero dizer, como o concebem - a ponto de poder surgir por força própria e que
tem um poder peculiar e distinto pelo qual ele pode cooperar com a graça de
Deus. Não rejeito o nome, e sim a coisa em si. Para que o livre--arbítrio se
harmonize com a graça, eles os separam de tal maneira que Deus restaura em nós
uma livre escolha, para que tenhamos em nosso próprio poder o querer corretamente.
E assim eles reconhecem haver recebido de Deus o poder de querer corretamente,
porém designam ao homem uma inclinação boa. Entretanto, Paulo declara que esta é
uma obra de Deus, sem qualquer reserva. Pois ele não diz que nossos corações são
simplesmente convertidos ou despertados, ou que a falta de firmeza de [alguém
com] boa vontade é auxiliada, mas que uma inclinação positiva é uma obra
inteiramente de Deus.
Ora, na calúnia
que eles apresentam contra nós - de que enxergamos os homens como pedras quando
ensinamos que nada possuem de bom, exceto o que procede da mais pura graça,
agem de maneira despudorada. Pois reconhecemos que temos da natureza uma
inclinação, porém, visto ser ela depravada em decorrência do pecado, ela só
começa a ser boa quando é renovada por Deus. Tampouco dizemos que uma pessoa
faz algo bom sem o querer, porém ele só faz isso quando sua inclinação é
regulada pelo Espírito de Deus. Daí, no que diz respeito a este ponto, vemos
que todo o louvor é atribuído a Deus, e que o que os sofistas nos ensinam é frívolo
- que a graça nos é oferecida e posta, por assim dizer, em nosso meio para que
a abracemos se a quisermos. Porque, se Deus não operasse em nós eficazmente, não
se poderia dizer que ele produz em nós uma inclinação positiva ou boa. Quanto
ao segundo departamento, devemos adotar o mesmo ponto de vista. “Deus”, diz
ele, “é quem efetua em vós tanto o querer como o realizar.” Portanto, ele leva à
perfeição aquelas disposições piedosas que já implantou em nós, para que não
sejamos improdutivos, segundo promete por meio de Ezequiel: “Para que andem em
meus estatutos, e guardem minhas ordenanças e as cumpram; e eles serão meu povo
e eu serei seu Deus” [Ez 11.20]. Disto inferimos que a perseverança também provém
de seu dom gratuito.
Deus nos
abençoe!
João Calvino (1509-1564).
Nenhum comentário:
Postar um comentário