“ROGO-VOS, POIS, IRMÃOS, PELAS MISERICÓRDIAS DE DEUS” - PARTE II
“Rogo-vos, pois, irmãos, pelas misericórdias de Deus, que apresenteis
o vosso corpo por sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, que é o vosso
culto racional” (Rm 12.1).
“Que apresenteis o vosso corpo por sacrifício vivo, santo e agradável
a Deus”. O conhecimento de que somos agora consagrados ao Senhor é, portanto,
o ponto de partida do genuíno percurso em direção à vida de boas obras.
Segue-se daqui que nos é mister cessar de viver para nós mesmos, a fim de
podermos devotar todas as ações de nossa vida ao culto divino.
Há, pois, duas questões a serem ponderadas aqui. A primeira é que
pertencemos ao Senhor; e a segunda é que devemos, por esta mesma razão, ser
santos, porquanto seria uma afronta à santidade do Senhor oferecer-lhe algo que
não haja sido antes consagrado. Desta pressuposição segue-se, ao mesmo tempo,
que devemos meditar sobre a santidade que deve permear todas as áreas e toda a
extensão de nossa vida. Segue-se também, deste mesmo fato, que seria uma
espécie de sacrilégio reincidirmos na impureza, pois tal coisa seria pura e
simplesmente profanar o que já havia sido santificado.
A linguagem do apóstolo Paulo sofre uma grande mudança. Primeiramente,
ele afirma que o nosso corpo deve ser
oferecido a Deus em forma de sacrifício. Com isto ele pretende ensinar que não
mais nos pertencemos, senão que passamos a pertencer inteiramente a Deus.
Contudo, isto não pode acontecer sem primeiro não renunciarmos ou negarmos a
nós mesmos. Ele, pois, declara, através dos adjetivos que adiciona, que gênero
de sacrifício é este. Ao qualificá-lo de vivo,
sua intenção é que somos sacrificados ao Senhor a fim de que nossa vida
anterior seja destruída em nós, e que sejamos ressuscitados para uma nova vida.
Pelo termo santo ele aponta, como já
mencionamos, para a genuína natureza de um ato sacrificial. Porque a vítima do
sacrifício só é agradável e aceitável a Deus quando é previamente santificada.
O terceiro adjetivo [aceitável] nos
lembra que nossa vida só é corretamente ordenada quando regulamos este auto-sacrifício
de acordo com a vontade de Deus. Este elemento não nos traz algum consolo
supérfluo, pois ele nos instrui que nossos labores são agradáveis e aceitáveis
a Deus quando nos devotamos à retidão e à santidade.
Pelo termo corpo ele não
quer dizer simplesmente nosso corpo físico, composto de pele, músculos e ossos,
mas aquela plenitude existencial da
qual nos compomos. Paulo usou este termo, por sinédoque, para denotar toda a
nossa personalidade, pois os membros
do corpo são os instrumentos pelos quais praticamos nossas ações. Ele também
requer de nós integridade, não só do corpo, mas também da alma e do espírito,
como lemos em 1 Tessalonicenses 5.23. Ao convidar-nos a apresentarmos os nossos corpos, ele está fazendo alusão aos
sacrifícios mosaicos, os quais eram apresentados no altar como na própria presença
de Deus. Outrossim, ele está também fazendo uma extraordinária referência à prontidão que devemos demonstrar ao
recebermos os mandamentos de Deus, para que os cumpramos sem detença.
Deduzimos deste fato, que todos aqueles que não se propõem a cultuar a
Deus, simplesmente fracassam e se extraviam por caminhos que levam a uma
miserável condição. Agora também entendemos que tipo de sacrifício o apóstolo
recomenda a Igreja Cristã. Visto que nos reconciliamos com Deus, em Cristo,
através de seu verdadeiro sacrifício, somos, todos nós, por sua graça, feitos
sacerdotes com o fim de podermos consagrar-nos a ele como sacrifício vivo e
tributar-lhe toda glória por tudo que temos e somos. Não resta mais nenhum
sacrifício expiatório para se oferecer, e não se pode fazer tal coisa sem
trazer grande desonra para a cruz de Cristo.
Deus nos abençoe!
João Calvino (1509-1564).
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