“NAS TUAS MÃOS, ENTREGO O MEU ESPÍRITO”
“Nas tuas mãos, entrego o meu espírito; tu me remiste, SENHOR, Deus da verdade" (Sl 31.5).
O salmista Davi
uma vez mais declara sua fé em Deus e afirma que nutria pensamentos tão elevados
acerca da providência divina, que depositava sobre ela todas as suas preocupações.
Todos quantos se põem nas mãos de Deus e se confiam à sua proteção, não só o constitui
o árbitro da vida e da morte, mas também serenamente passam a depender dele
para sua proteção em meio a todos os perigos que porventura enfrentem. É
preciso observar que não é possível que alguém encomende sua vida a Deus com
sinceridade, senão aquele que se considera exposto a milhares de mortes e cuja
vida pende por um fio. Achando-se Davi assim ao ponto de desespero, nada tem a
fazer senão isto: seguir seu caminho, confiando em Deus como o guardador e
governador de sua vida. É espantoso que, embora muitas coisas aflijam a todos nós,
dificilmente encontramos um em cem que seja tão sábio ao ponto de encomendar
sua vida às mãos divinas. Multidões vivem dia a dia tão eufórica e
displicentemente como se estivessem deitadas em quietas redes, isentas de toda
perturbação; tão logo, porém, encontrem algo que as terrifique, se sentem como se
a angústia as destruísse. Assim sucede que nunca se rendem a Deus, seja porque
se iludem com vãs ilusões, gabando-se de que tudo lhes irá bem, ou porque se
sentem tão estremecidos de medo, tão petrificados com espanto que não nutrem
qualquer alento de entregar-se ao seu cuidado paterno. Além do mais, quando as
várias tempestades de tristeza nos perturbam, ou nos desviam da reta vereda do dever,
ou no mínimo nos arrancam de nosso posto, o único antídoto que existe para
acalmar tais coisas é considerar que Deus é o Autor e preservador de nossas
vidas. Este, pois, é o único meio de aliviar todas as nossas cargas e
impedir-nos de sermos tragados por tantas preocupações. Visto, pois, que Deus se
condescende em tomar cuidado de nossa vida e de suportá-la, embora seja ela repetidas
vezes exposta a diversas sortes de morte, aprendamos sempre a buscar refugio em
seu abrigo; não só isso, mas quanto mais alguém se vê exposto aos perigos, mais
se exercita a meditar criteriosamente em seu zelo por nós. Em suma, que seja
este nosso escudo contra todos os perigosos ataques - nosso céu em meio a todas
as agitações e tempestades -, a saber, embora nossa segurança esteja além de
toda e qualquer esperança humana, Deus é o fiel guardião dela; e que isso também
nos desperte à oração, para que ele nos defenda e garanta nosso livramento.
Concluindo,
quem quer que não confie na providência divina, bem como não encomende sua vida
à fiel diretriz dela, ainda não aprendeu corretamente o que significa viver. Em
contrapartida, aquele que confiar a guarda de sua vida ao cuidado divino, não duvidará
de sua segurança mesmo em face da morte. Devemos, pois, depositar nossa vida
nas mãos de Deus, não só para que ele a conserve em segurança neste mundo, mas
também para que a preserve da destruição da própria morte, como o próprio
exemplo de Cristo nos tem ensinado. Da forma como Davi desejava ter sua vida
prolongada em meio aos perigos mortais, assim Cristo enfrentou esta vida
transitória para que sua alma fosse salvaguardada na morte. Portanto, esta é
uma oração geral, na qual os fiéis encomendam suas vidas a Deus, para que ele
os proteja pela instrumentalidade de seu poder, sempre que se veem expostos aos
perigos deste mundo. Devemos igualmente assegurar-nos de que não somos
esquecidos de Deus, quer na vida quer na morte; porquanto os que Deus protege
com seu poder até o término de sua jornada, por fim os recebe em seu seio quando
morrem. Esta é uma das principais passagens da Escritura à luz da qual podemos
com mais eficácia corrigir nossa incerteza. Ela nos ensina, em primeiro lugar,
que os fiéis não devem atormentar-se acima da medida com infelizes preocupações
e ansiedades; e, em segundo lugar, não devem viver tão dominados pelos temores
ao ponto de cessarem de realizar seus deveres; nem definhar e desfalecer de tal
maneira ao ponto de se valerem de vãs esperanças e de enganosos auxílios; nem
dar vazão aos temores e aos estresses; e, por fim, que não temam a morte, a
qual, ainda que destrua o corpo, não pode extinguir a alma. Este deveras deve ser
nosso principal argumento a fim de subjugar todas as tentações, a saber, que
Cristo, ao encomendar sua alma a seu Pai, garantiu a proteção das almas de todo
o seu povo. Estêvão, pois, o invoca para que fosse seu guardador, dizendo: “Senhor
Jesus, recebe meu espírito” [At 7.59]. Uma vez que a alma é a sede da vida,
ela, neste respeito, como se sabe muito bem, é usada para significar a vida.
Deus nos abençoe!
João Calvino (1509-1564).
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