“A TI TAMBÉM, SENHOR, PERTENCE A MISERICÓRDIA”
“A ti também,
Senhor, pertence a misericórdia; pois certamente retribuirás a cada um segundo as suas obras” (Sl 62.12).
Podemos então juntar numa forma bem conectada as doutrinas particulares
que Davi selecionou para uma atenção especial. É essencialmente necessário, se
porventura temos de fortificar nossas mentes contra a tentação, cultivar
conceitos adequadamente elevados do poder e misericórdia de Deus, visto que
nada nos preservará mais eficientemente numa trajetória reta e sem desvios do
que a firme convicção de que todos os eventos se acham nas mãos de Deus, e que
ele é misericordioso e poderoso. Consequentemente, Davi dá seguimento ao que
havia dito sobre o tema da diferença de se render em obediência à palavra,
declarando que fora instruído por ela no poder e bondade de Deus. Alguns [intérpretes]
o entendem como a dizer que está no poder de Deus livrar seu povo e que sua
clemência o convence a exercê-lo. Ele, porém, parece mais tencionado a dizer
que Deus é poderoso para impor restrição aos ímpios e esmagar sua soberba e
seus nefastos desígnios, mas que a disposição de sua bondade é sempre proteger
e defender seus próprios filhos. O homem que se disciplina à contemplação destes
dois atributos, os quais nunca devem estar em nossa mente dissociados da ideia
de Deus, está certo de permanecer ereto e inamovível ante os furiosos assaltos
da tentação; enquanto que, por outro lado, ao perdermos de vista a infinita
suficiência de Deus (o que nos dispomos demasiadamente a fazer), nos tornamos
vulneráveis ao massacre do primeiro encontro [no campo de batalha]. A opinião
que o mundo tem de Deus é que ele está sentado no céu como indolente e
despreocupado espectador dos eventos que se desenrolam. Carece que fiquemos
surpresos diante do fato de que os homens estremecem ante a própria
casualidade, ao crerem que são objetos do cego acaso? Não podemos sentir
segurança a menos que fiquemos satisfeitos com a verdade de que há uma divina
superintendência, e portanto podemos entregar nossas vidas e tudo o que temos
nas mãos de Deus. A primeira coisa que devemos observar é seu poder, a fim de
podermos nutrir plena convicção de ser ele um seguro refugio para todos quantos
se entregam ao seu cuidado. A isso devemos juntar a confiança em sua misericórdia,
a fim de impedir os ansiosos pensamentos que de outra forma brotariam em nossa
mente. Esta poderia sugerir a dúvida: Ora, se Deus governa o mundo, segue-se,
então, que ele se preocupará com objetos tão sem valor como nós somos?
Há uma óbvia razão, pois, para o salmista associar estas duas coisas:
seu poder e sua clemência. Estas são as duas asas com as quais voamos para o céu;
as duas colunas entre as quais descansamos e podemos desafiar as procelosas
vagas da tentação. Os perigos, em suma, surgem de qualquer canto, e por isso
temos de nos lembrar que o divino poder que pode coibir todos os males, e enquanto
tal sentimento prevalecer em nossa mente, nossos problemas não podem deixar de
cair prostrados diante do divino poder. Por que temeríamos? Como é possível
temermos quando o Deus que nos cobre com a sombra de suas asas é o mesmo que governa
o universo com um gesto seu, mantém secretas as cadeias do diabo e de todos os ímpios,
e eficazmente administra os desígnios e intrigas deles?
Deus nos abençoe!
João Calvino (1509-1564).
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