“MANTENDO FÉ E BOA CONSCIÊNCIA”
“Mantendo fé e boa
consciência, porquanto alguns, tendo rejeitado a boa consciência, vieram a
naufragar na fé” (1Tm 1.19).
Tomo a palavra “fé” num
sentido geral, ou seja, de ensino sadio. É nesse sentido que o apóstolo Paulo
usa o termo mais adiante, quando fala de “o mistério da fé” [3.9]. Essas são
deveras as principais coisas requeridas de um mestre, ou seja, que seja um
ministro de consciência íntegra e zelo equilibrado. Onde esses dois elementos se fazem presentes, o resto se sguirá dos mesmos.
O apóstolo mostra quão
necessário se faz que uma consciência íntegra acompanhe a fé, pois o castigo de
uma má consciência consiste no desvio da senda do dever. Aqueles que não servem
a Deus com uma mente pura e honesta, mas se entregam às más disposições, ainda
que tenham começado com uma mente equilibrada, no fim perdem-na completamente.
Esta passagem deve receber cuidadosa ponderação. Sabemos que o tesouro da sã
doutrina é inestimável, e nada há para se temer mais do que o risco de perdê-lo.
Aqui, porém, Paulo nos diz que a única forma de conservá-lo é conservando-o com
uma boa consciência. Por que é que tantos rejeitam o evangelho e se precipitam
no seio das seitas ímpias ou se envolvem em erros monstruosos? É porque Deus
pune os hipócritas com esse gênero de cegueira, justamente como, em contrapartida,
um sincero temor de Deus nos injeta vigor para perseverarmos. Desse fato
podemos aprender duas lições. Primeiramente, os mestres e ministros do
evangelho, e através deles toda a Igreja, são advertidos sobre como muitos
deles devem sentir repulsa por uma falsa e hipócrita profissão da verdadeira
doutrina, visto ser a mesma castigada com extrema severidade. Em segundo lugar,
esta passagem remove aquela debilidade que perturba a tantos, quando eles se
deparam com alguns que uma vez professaram a Cristo e seu evangelho, não só
retornando à suas superstições anteriores, mas, pior ainda, se deixam fascinar
por erros monstruosos. Como por exemplo, Deus está publicamente vindicando a honra
do evangelho e publicamente declarando que não pode suportar que o mesmo seja
profanado. Isso é algo que se pode aprender da experiência da própria época,
todos os erros que têm surgido na Igreja Cristã, desde seus primórdios, emanam
dessa fonte: a cobiça e o egoísmo às vezes têm extinguido o genuíno temor de
Deus. Daí a má consciência ser a mãe de todas as heresias, e hoje nos deparamos
com um vasto número de pessoas que jamais abraçaram a fé com honestidade e
sinceridade. E não só isso, mas também que o menosprezo por Deus se espalha por
toda parte e as vidas licenciosas e depravadas de quase todas as classes humanas
revelam que não resta no mundo senão uma minguada porção de integridade, de modo
que há boas razões para temer-se que a luz que ficou acesa tão pronto se
apague, e que Deus conserve num limitadíssimo número de pessoas o sadio
entendimento do evangelho.
Deus nos abençoe!
João Calvino (1509-1564).
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