“OS QUAIS ENTREGUEI A SATANÁS”
“E dentre esses se contam Himeneu e Alexandre,
os quais entreguei a Satanás, para serem castigados, a fim de não mais blasfemarem” (1Tm 1.20).
O apóstolo Paulo fará novamente
menção do primeiro desses dois homens na segunda epístola, e aí se faz evidente
que gênero de naufrágio ocorreu, pois ele dizia que a ressurreição dos mortos
era algo que pertencia ao passado. É possível que Alexandre também tenha se apaixonado
por esse erro tão absurdo. Ao percebermos que nem mesmo um dos companheiros de
Paulo escapou de perecer numa queda tão
medonha, porventura nos sentiremos surpresos se hoje Satanás, com seus
multiformes encantamentos, seja capaz de iludir os homens? Ele menciona ambos esses
homens a Timóteo como pessoas bem conhecidas dele. Não tenho dúvida de que esse
é o mesmo Alexandre de quem Lucas faz menção em Atos 19.33, como sendo o homem
que tentou, sem êxito, reprimir o tumulto em Éfeso. Ele era natural de Éfeso,
e, como já dissemos, esta epístola foi escrita primordialmente em benefício dos
efésios. Agora já sabemos qual foi o fim de Alexandre; e daqui devemos aprender
a conservar a possessão de nossa fé através de uma boa consciência, para que a
retenhamos até o fim.
Os quais entreguei a Satanás. Como realçamos em
conexão com 1Coríntios 5.5, há quem considere esta frase como uma indicação da
aplicação de algum castigo inusitado, e o conecta com os poderes, que Paulo
menciona em 1Coríntios 12.28. Como os apóstolos foram dotados com o dom de cura
em testemunho da graça e favor de Deus para com os santos, assim foram armados
contra os ímpios e rebeldes com poder tanto para entregá-los ao diabo para que
fossem atormentados como também para aplicar sobre eles algum outro castigo.
Pedro nos deu um exemplo do exercício desse poder ao tratar com Ananias e
Safira [At 5.11]; e Paulo, ao tratar com o mágico Barjesus [At 13.6].
Contudo prefiro
interpretar esta frase no sentido de excomunhão,
pois o ponto de vista que assevera que o homem incestuoso de Corinto recebeu
algum outro gênero de castigo não é comprovado através de algum argumento
consistente. E se foi por excomunhão que Paulo o entregou a Satanás, por que
não deveria a mesma expressão ter o mesmo significado aqui? Visto que é na Igreja
que Cristo mantém a sede de seu reino, do lado de fora da Igreja outra coisa
não existe senão o domínio de Satanás. Portanto, aquele que é eliminado da
Igreja, necessariamente cai, por algum tempo, sob a tirania de Satanás, até que
se reconcilie com a Igreja e retorne a Cristo. Faço a seguinte exceção: em
razão da enormidade da ofensa, é provável que Paulo tenha pronunciado perpétua excomunhão
contra aqueles dois homens; todavia, sobre isso não me aventuro afazer uma
asseveração específica.
Qual, porém, é o significado
da última cláusula: para serem castigados, a fim de não mais
blasfemarem? A pessoa que
é expulsa da Igreja assume maior liberdade de ação para si, visto que ela não
mais está sob a restrição de disciplina ordinária, e pode irromper-se com maior
insolência. Minha resposta é que não importa o grau de perversidade a que se
entreguem, as portas permanecerão fechadas para eles, a fim de que, por meio de
seu exemplo, o rebanho não seja prejudicado. Porque o maior dano que os homens
perversos podem causar é quando se infiltram no rebanho sob o pretexto de
confessar a mesma fé. Portanto, o poder de fazer dano é tirado deles quando são
marcados por infâmia pública, de sorte que ninguém seja tão simplório que
ignore o fato de serem eles irreligiosos e detestáveis, e assim sejam banidos
por todos de sua sociedade. Às vezes sucede que, sendo atingidos por tal
estigma de infortúnio, eles mesmos se convertem de seus maus caminhos.
Portanto, ainda que a excomunhão às vezes torna os homens ainda piores, nem
sempre é de todo ineficaz para dominar sua impetuosidade.
Deus nos abençoe!
João Calvino (1509-1564).
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