“ERA BLASFEMO, E PERSEGUIDOR, E INSOLENTE”
“A mim, que, noutro
tempo, era blasfemo, e perseguidor, e insolente. Mas obtive misericórdia, pois
o fiz na ignorância, na incredulidade” (1Tm 1.13).
Blasfemo contra Deus e
perseguidor e injuriador contra a Igreja. Vemos quão candidamente Paulo confessa
o que poderia ter sido assacado contra ele em forma de censura, e quão longe
estava de atenuar seus pecados. Mas, ao reconhecer espontaneamente sua
indignidade em denominar-se de perseguidor,
ele expressa sua fúria e indignação ainda mais profundamente, reconhecendo quão
injurioso havia sido contra a Igreja.
Pois o fiz na
ignorância, na incredulidade. “Obtive perdão para minha
incredulidade”, diz Paulo, “a qual procedia de minha ignorância”, pois a
perseguição e a violência outra coisa não eram senão fruto da incredulidade.
Mas ele parece pressupor que só pode haver perdão quando há um contundente
pretexto de ignorância, o que nos leva a perguntar: se uma pessoa peca conscientemente,
Deus jamais a perdoará? Minha resposta é que devemos atentar para a palavra incredulidade, pois que ela restringe a
afirmação de Paulo à primeira tábua da lei. As transgressões da segunda tábua,
ainda que deliberadamente, são perdoadas, mas aquele que, conscientemente,
viola a primeira tábua peca contra o Espírito Santo, pois se põe diretamente em
oposição a Deus. Tal pessoa não comete erro por fraqueza, mas por erguer-se em
rebelião contra Deus, que revela um seguro sinal de sua reprovação. Daqui se
pode deduzir uma definição do pecado contra o Espírito Santo. Em primeiro lugar,
é uma direta rebelião contra Deus, em [franca] transgressão da primeira tábua;
em segundo lugar, é uma maliciosa rejeição da verdade; pois quando a verdade de
Deus é rejeitada, sem malícia deliberada, o Espírito Santo não é propriamente
resistido. Finalmente, incredulidade é aqui empregada como um termo geral; e a
intenção maliciosa, que é o oposto de ignorância, é a condição qualificativa.
Daí, estão equivocados
os que sustentam que o pecado contra o Espírito Santo consiste na transgressão
da segunda tábua, e estão igualmente equivocados os que fazem de um crime tão
hediondo uma mera violência irrefletida. O pecado contra o Espírito Santo só é
cometido quando os homens mortais deflagram deliberada guerra contra Deus, de
tal sorte que extingue-se a luz que o Espírito lhes oferecera. Essa é uma
espantosa perversidade e uma monstruosa temeridade. Não há dúvida de que aqui
há uma ameaça implícita com o propósito de atemorizar todos quantos uma vez
foram iluminados, para que não se voltassem contra a verdade que já haviam
confessado, pois semelhante queda seria fatal. Se foi devido à ignorância que
Deus perdoara a Paulo suas blasfêmias, os que blasfemam consciente e
deliberadamente não devem esperar perdão.
Poder-se-ia
conjecturar, porém, que o que Paulo diz está fora de propósito, visto que não
pode haver incredulidade que não envolva também ignorância, porquanto a
incredulidade é sempre cega. Minha resposta é que entre os incrédulos há
aqueles que são tão cegos que se extraviam do que é certo, movidos por suas
falsas concepções, enquanto que outros, ainda que sejam demasiadamente cegos, a
malícia é um fator decisivo. Embora Paulo também possuísse má disposição, em
alguma medida, em seu caso houve certo zelo irrefletido que o arrebatara de tal
modo, que chegou a acreditar estar agindo corretamente. Por isso ele não se constituía
em deliberado inimigo de Cristo, senão que foi meramente movido por equívoco e
ignorância. Em contrapartida, os fariseus que falsamente acusavam a Cristo, e
que, movidos por má consciência, não estavam totalmente isentos de erro e
ignorância, senão que seus motivos eram a ambição e uma perversa indisposição
contra a sã doutrina; em suma, uma furiosa rebelião contra Deus, de sorte que,
maliciosa e deliberadamente, e não por ignorância, se voltaram contra Cristo.
Deus nos abençoe!
João Calvino (1509-1564).
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