“UMA VEZ FALOU DEUS; DUAS VEZES OUVI ISTO”
“Uma vez falou
Deus; duas vezes ouvi isto: que o poder pertence a Deus” (Sl 62.11).
O salmista Davi considerava que o único método eficaz de abstrair
as mentes dos homens das vãs ilusões, em que se dispõem a confiar, era levá-los
a se conscientizarem implícita e firmemente do juízo divino. Geralmente se
agitam em diferentes direções, ou, pelo menos, se dispõem à oscilação assim que
observam as coisas mutáveis deste mundo. Mas ele mantém sob observação um princípio
mais acurado para a regulamentação de sua conduta, quando recomenda um respeito
diferenciado pela Palavra de Deus. Deus, propriamente dito, “habita em luz
inacessível” [lTm 6.16]; e já que ninguém pode chegar a ele sem que esteja
munido de fé, o salmista chama nossa atenção para sua Palavra, na qual
testifica a veracidade de seu divino e justo governo do mundo. É de grande
importância que sejamos estabelecidos na fé proveniente da Palavra de Deus; e
aqui somos conduzidos à infalível inerrância que lhe é inerente. A passagem admite
duas interpretações; o escopo dela, porém, é claramente este: que Deus age
consistentemente consigo mesmo, e jamais poderá desviar-se do que ele disser.
Muitos entendem Davi como a dizer que Deus falou uma vez e uma segunda vez; e
que por esta afirmação explícita e reiterada de seu poder e misericórdia, ele
confirmou a verdade além de toda e qualquer possibilidade de contradição. Há
uma passagem que contém o mesmo efeito no capítulo trinta e três, versículo
quatorze, do livro de Jó, onde as mesmas palavras são empregadas, tendo apenas
a conjunção como interposição. Se alguém o preferir, contudo, não faço objeções
a outro significado - Deus falou uma vez; duas
vezes ouvi isto. Isso concorda com o contexto e pressupõe uma lição prática de
grande importância; pois quando Deus tiver uma vez emitido sua palavra, jamais se
retratará. De um lado, é nosso dever ponderar sobre o que ele disse, demorada e
deliberadamente; e a intenção de Davi então será que ele considerou a Palavra
de Deus à luz de um decreto, fixo e irreversível, mas que, como considerava seu
exercício em referência a ele, então meditava sobre o mesmo vezes e mais vezes,
a fim de que o lapso de tempo não o obliterasse de sua memória. Mas a redação
mais simples e preferível parece ser esta: Deus falou uma vez e outra vez. Não
há consistência na engenhosa conjectura de que a alusão poderia ser que Deus uma
vez falou na Lei, e a segunda vez nos Profetas. Nada mais está embutido além do
fato de que a verdade referida fora simplesmente confirmada, sendo comumente
reputado como certo e fixo aquilo que tem sido reiteradamente anunciado. Aqui,
contudo, deve-se lembrar que toda palavra que foi pronunciada por Deus deve ser
recebida com autoridade implícita, e não a aprovação dada à abominável prática
da recusa de receber uma doutrina, a menos que ela seja apoiada por dois ou três
textos da Escritura. Isto tem sido defendido por um herege sem princípios [que
vive] entre nós, o qual tem tentado subverter a doutrina da soberana eleição e
da secreta providência. Não era a intenção de Davi dizer que Deus estava preso à
necessidade de repetir o que tencionasse anunciar, mas simplesmente afirma a
infalibilidade de uma verdade que havia declarado em termos claros e sem ambiguidade.
No texto que se segue [v.12], ele toma a si como exemplo daquela reverência e
daquele respeito diferenciados que nutria pela Palavra de Deus que se estendia
a todos, mas que tão poucos realmente a atendiam.
Deus nos abençoe!
João Calvino (1509-1564).
Nenhum comentário:
Postar um comentário