“A PALAVRA DE SALVAÇÃO” - Introdução
“E disse a Jesus: Senhor, lembra-te de mim quando entrares no teu
reino. E disse-lhe Jesus: Em verdade te digo que hoje estarás comigo no Paraíso”
(Lc 23.42,43).
A segunda
declaração de Cristo na cruz foi feita em
resposta ao pedido do ladrão à beira da morte. Antes de considerarmos as
palavras do Salvador ponderaremos primeiro sobre o que as ocasionou. Não foi
acidente algum o fato de o Senhor da glória ter sido crucificado entre dois ladrões.
Nada ocorre por acidente em um mundo que é governado por Deus. Muito menos
poderia ter havido qualquer acidente naquele dia dos dias, ou em conexão com aquele
evento dos eventos — um dia e um evento que estão situados no próprio centro da
história do mundo. Não, Deus estava presidindo sobre aquela cena. Desde a eternidade
toda ele havia decretado quando e onde e como e com quem seu Filho deveria
morrer. Nada foi deixado ao acaso ou ao capricho do homem. Tudo que Deus tinha
decretado veio a suceder exatamente como ele havia ordenado, e nada aconteceu que
não tivesse ele eternamente intentado. Tudo quanto o homem fez foi simplesmente
o que a mão e o conselho divinos “tinham anteriormente determinado” (At 4.28).
Quando Pilatos
deu ordens para que o Senhor Jesus fosse crucificado entre os dois malfeitores,
estava pondo em execução o decreto eterno de Deus e cumprindo sua palavra
profética, coisas que lhe eram totalmente desconhecidas. Setecentos anos antes que
esse dignitário romano desse sua ordem, Deus tinha declarado mediante Isaías
que seu Filho deveria ser “contado com os transgressores” (Is 53.12). Quão
totalmente improvável parecia isso, que o Santo de Deus devesse ser contado com
os ímpios; que aquele mesmo cujo dedo havia inscrito nas tábuas de pedra da Lei
do Sinai devesse ter um lugar designado entre os sem lei; que o Filho de Deus
devesse ser executado com os criminosos — tal parecia completamente
inconcebível. Todavia, na realidade, foi o que veio a ocorrer. Nem uma só
palavra divina pode-se deixar escapar. “Para sempre, ó Senhor, a tua palavra
permanece no céu” (Sl 119.89). Assim como Deus havia ordenado, e assim como
havia anunciado, assim aconteceu.
Porque ele ordenou que seu Filho devesse ser crucificado entre dois
criminosos? Certamente que Deus tinha uma razão para tal; uma boa, uma múltipla
razão, quer possamos discerni-la ou não. Ele nunca procede arbitrariamente. Ele
tem um bom propósito para tudo o que faz, pois todas as suas obras estão
ordenadas pela sabedoria infinita. Nesse exemplo particular, várias respostas
se insinuam à nossa inquirição. Não foi nosso bendito Senhor crucificado com os
dois ladrões para demonstrar plenamente as insondáveis profundezas da
vergonha em que havia descido? Em seu nascimento ele estava rodeado pelas
bestas do campo e, agora, em sua morte, é contado com a escória da humanidade.
Outra vez, não
foi o Salvador contado com os transgressores para nos mostrar a posição que
ele ocupou como nosso substituto? Ele havia ocupado o lugar que era nosso, e
o que era senão o lugar de vergonha, o lugar dos transgressores, o lugar dos
criminosos condenados à morte!
Outra vez, não
foi ele deliberadamente humilhado daquele modo por Pilatos para mostrar a
avaliação pelo homem daquele inigualável — “desprezado” tanto quanto rejeitado!
Outra vez, não
foi ele crucificado com os dois ladrões, de modo que naquelas três cruzes e nos
que nelas estavam dependurados, pudéssemos ter a representação vívida e concreta
do drama da salvação e da resposta do homem a isso — a redenção do Salvador;
o pecador que se arrepende e crê; e o que insulta e rejeita?
Uma outra
importante lição que podemos aprender da crucificação de Cristo entre os dois
ladrões, e o fato de que um o recebeu e o outro o rejeitou, é a da soberania
divina. Os dois malfeitores foram crucificados juntos. Estavam à mesma
proximidade de Cristo. Ambos viram e ouviram tudo o que se tornou conhecido
durante aquelas seis fatídicas horas. Ambos eram notoriamente perversos; ambos
estavam sofrendo agudamente; ambos estavam morrendo, e ambos necessitavam
urgentemente de perdão. Todavia, um morreu em seus pecados, morreu como tinha
vivido — endurecido e impenitente; ao passo que o outro se arrependeu de sua
maldade, creu em Cristo, recorreu a ele para obter misericórdia e entrou no
Paraíso. Como explicar isso, senão pela soberania de Deus!
Vemos
precisamente que a mesma coisa continua hoje. Sob exatamente as mesmas circunstâncias
e condições, um é enternecido e outro permanece inalterado. Sob o mesmo sermão,
um homem ouvirá com indiferença, enquanto outro terá seus olhos abertos para
ver sua necessidade e sua vontade movida para perto da oferta da misericórdia
divina. Para um, o evangelho é revelado, para outro, “oculto”. Por quê? Tudo o
que podemos dizer é: “Sim, ó Pai, porque assim te aprouve”. E, contudo, a soberania
divina nunca quer dizer destruir a responsabilidade humana. Ambas são claramente
ensinadas na Bíblia, e é nosso dever crer e pregar as duas, quer possamos harmonizá-las
ou compreendê-las quer não. Ao pregarmos ambas pode parecer a nossos ouvintes
que nos contradizemos, mas que importa?
Disse o
falecido C. H. Spurgeon, quando pregava em 1Timóteo 2.3,4: “Ali no texto se acha,
e creio que é do desejo de meu Pai, que ‘todos os homens se salvem, e venham ao
conhecimento da verdade’. Mas eu sei, também, que ele não o quer, de modo que salvará
a qualquer um daqueles, apenas se crerem em seu Filho; pois ele no-lo disse repetidas
vezes. Ele não salvará homem algum, a menos que esse abandone seus pecados, e
se volte para ele com pleno propósito de coração: isso eu também sei. E sei, ainda,
que ele tem um povo a quem salvará, a quem, por seu eterno amor, elegeu e a quem,
por seu eterno poder, ele libertará. Eu não sei como aquilo se ajusta com isso,
que é mais uma das coisas que não sei.” E disse esse príncipe dos
pregadores: “Eu permanecerei exatamente no que sempre hei de pregar e sempre
tenho pregado, e tomo a palavra de Deus como está, possa eu reconciliá-la
com uma outra parte da palavra divina ou não.” Dizemos novamente, a
soberania de Deus nunca significa destruir a responsabilidade do homem. Devemos
fazer uso diligente de todos os meios que ele designou para a salvação das
almas. Somos ordenados a pregar o evangelho a “toda criatura”. A graça é livre:
o convite é amplo o bastante para “quem crer” o aceitar. Cristo não despede ninguém
que venha a ele. Todavia, após havermos feito tudo, após havermos plantado e
aguado, é Deus quem dá o crescimento, e o faz de modo a melhor satisfazer sua soberana
vontade.
Na salvação do
ladrão agonizante temos uma visão clara da graça vitoriosa, como não encontrada
em nenhum outro lugar na Bíblia. Deus é o Deus de toda graça, e a salvação é
inteiramente por meio dessa. “Pela graça sois salvos” (Ef 2.8), e é “pela
graça” do começo ao fim. A graça planejou a salvação, a graça proveu a
salvação, e a graça assim opera sobre e em seus eleitos para sobrepujar a
dureza de seus corações, a obstinação de suas vontades, e a inimizade de suas
mentes, e assim os torna propensos a receber a salvação. A graça inicia,
a graça continua, e a graça consuma a nossa salvação.
A salvação
pela graça — soberana, irresistível, livre graça — é ilustrada no Novo Testamento
tanto por exemplo quanto por preceito. Talvez os dois casos mais contundentes
de todos sejam os de Saulo de Tarso e do Ladrão Agonizante. E esse último é até
mais digno de nota que o primeiro. No caso de Saulo, que posteriormente tornou-se
Paulo, apóstolo dos gentios, havia um caráter moral exemplar, para começo de
conversa. Escrevendo anos depois sobre sua condição antes da conversão, o
apóstolo declarou que, no tocante à justiça da lei, ele era “irrepreensível”
(Fp 3.6). Ele era um “fariseu dos fariseus”: meticuloso em seus hábitos,
correto em seu procedimento. Moralmente, seu caráter era imaculado. Após a
conversão, sua vida foi de justiça no padrão evangélico. Constrangido pelo amor
de Cristo, consumiu-se na pregação do Evangelho aos pecadores e no labor da
edificação dos santos. Sem dúvida, nossos leitores concordarão conosco quando
dizemos que provavelmente Paulo estivesse mais perto de atingir os ideais da
vida cristã, e que ele seguiu após seu Mestre mais perto do que qualquer outro
santo desde então.
Mas com o
ladrão salvo foi, de longe, de outra forma. Ele não tinha vida moral alguma antes
de sua conversão e nenhuma de serviço ativo depois. Antes dela ele não
respeitava nem a lei de Deus nem a dos homens. Após sua conversão, ele
morreu sem ter oportunidade de se ocupar no serviço de Cristo. Enfatizarei
isso, porque essas são as duas coisas que são consideradas por tantos como
fatores que contribuem para nossa salvação. Supõe-se que devemos primeiro nos
adequar, desenvolvendo um caráter nobre diante de Deus, que nos receberá
como seus filhos, e que depois dele haver nos recebido, para sermos
experimentados, somos meramente postos à prova, e que, a menos que produzamos
uma certa qualidade e quantidade de boas obras, “cairemos da graça e ficaremos
perdidos”. Mas o ladrão agonizante não teve boa obra alguma, seja
antes ou depois da conversão. Em consequência, somos levados à conclusão que,
se ele foi salvo em absoluto, certamente o foi pela soberana graça.
A salvação do
ladrão agonizante também arranja um outro apoio para que o legalismo da mente
carnal se interponha para roubar de Deus a glória devida à sua graça. Em vez de
atribuir a salvação dos pecadores perdidos à inigualável graça divina, muitos
cristãos professos procuram explicá-las pelas influências humanas,
instrumentalidades e circunstâncias. Seja o pregador, sejam circunstâncias
providenciais ou propícias, sejam as orações dos crentes, tudo isso é visto
como a causa principal. Que não sejamos mal entendidos aqui. É verdade que Deus
com frequência se agrada de usar meios para a conversão dos pecadores; que
amiúde condescende em abençoar nossas orações e esforços para levar pecadores a
Cristo; que, muitas vezes, ele faz com que suas providências despertem e
sacudam os ímpios para a percepção de seus estados. Mas Deus não está preso a
essas coisas. Ele não está limitado às instrumentalidades humanas. Sua graça é
toda poderosa e, quando lhe agrada, ela é capaz de salvar apesar da falta daquelas,
e a despeito das circunstâncias desfavoráveis. Assim foi no caso do ladrão
salvo.
Considere:
Sua conversão ocorreu
numa época quando, exteriormente, parecia que Cristo havia perdido todo o poder
para salvar, seja a si mesmo ou a outros. Esse ladrão havia marchado ao lado do
Salvador através das ruas de Jerusalém e o tinha visto sucumbir sob o peso da
cruz! É altamente provável que, como sua ocupação fosse a de ladrão e assaltante,
esse fosse o primeiro dia que em que ele punha seus olhos no Senhor Jesus e, agora
que o via, era sob toda a circunstância de fraqueza e desgraça. Seus inimigos estavam
triunfando sobre ele. A maior parte de seus amigos o havia abandonado. A opinião
pública estava unanimemente contra ele. Sua própria crucificação foi considerada
como totalmente inconsistente com sua messianidade. Sua condição humilde foi
uma pedra de tropeço aos judeus desde mesmo o início, e as circunstâncias de
sua morte devem ter intensificado isso, especialmente a alguém que nunca o
havia visto senão em tal condição. Mesmo aqueles que tinham crido nele foram
levados à dúvida por causa de sua crucificação. Não havia ninguém na multidão
que estivesse ali com o dedo apontando para ele e gritando: “Eis o Cordeiro de
Deus, que tira o pecado do mundo!” E, todavia, não obstante tais obstáculos e
dificuldades no caminho de sua fé, o ladrão apreendeu a condição de Salvador e
o Senhorio de Cristo. Como podemos explicar tal fé e tal compreensão espiritual
em alguém em circunstâncias tais como a que se encontrava? Como podemos
explicar o fato de que esse ladrão agonizante tomou um homem em sofrimento,
sangrando e crucificado por seu Deus! Não pode ser explicado senão por
intervenção divina e operação sobrenatural. Sua fé em Cristo foi um milagre
da graça!
É para ser
notado ainda que a conversão do ladrão ocorreu antes dos fenômenos sobrenaturais
daquele dia. Ele exclamou: “Senhor, lembra-te de mim” antes das horas de
trevas, antes do brado triunfante, “Está consumado”, antes do véu
do templo se rasgar, antes do tremor de terra e do despedaçar das
rochas, antes da confissão do centurião: “Na verdade, este era Filho de
Deus”. Deus intencionalmente colocou sua conversão antes de tais coisas de modo
que sua soberana graça pudesse ser engrandecida e seu soberano poder
reconhecido. Ele calculadamente escolheu salvar esse ladrão sob as circunstâncias
mais desfavoráveis para que nenhuma carne se glorie em sua presença. Ele
deliberadamente dispôs essa combinação de condições e ambiente não propícios
para nos ensinar que “a salvação é do Senhor”; para nos ensinar a não engrandecer
a instrumentalidade humana acima da ação divina; para nos ensinar que toda
conversão genuína é o produto direto da operação sobrenatural do
Espírito Santo.
Deus nos
abençoe!
Arthur W. Pink (1886-1952).
*Faça-nos uma oferta (Pix 083.620.762-91).
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