“A MORTE DO SENHOR JESUS CRISTO”
“E Jesus, clamando outra vez com grande voz,
entregou o espírito” (Mt 27.50).
A morte do
Senhor Jesus Cristo é um assunto de interesse
inexaurível para todos os que estudam em oração a escritura da verdade. Tal é
assim não somente porque tudo do crente — tanto no tempo como na eternidade —
dela dependa, mas também devido à sua singularidade transcendente. Quatro
palavras parecem resumir as características salientes desse mistério dos
mistérios: a morte de Cristo foi natural, não natural, preternatural e
sobrenatural. Uns poucos comentários parecem ser necessários à guisa de
definição e amplificação.
Primeiro: a
morte de Cristo foi natural. Com isso queremos dizer que ela foi uma
morte real. É porque estamos tão familiarizados com o fato dela que a
declaração acima parece simples, corriqueira; todavia, o que abordamos aqui é
um dos principais elementos de admiração para a mente espiritual. Aquele que
foi “tomado, e pelas mãos de injustos” crucificado e assassinado não era outro
senão o Filho de Deus. O sangue que foi derramado sobre o madeiro maldito era
divino — “A igreja de Deus, que ele resgatou com seu próprio
sangue” (At 20.28). Como diz o apóstolo: “Deus estava em Cristo reconciliando
consigo o mundo” (2Co 5.19).
Mas como o Filho
de Deus poderia sofrer? Como o eterno poderia morrer? Ah, aquele
que no princípio era o Verbo, que estava com Deus, e que era Deus, “se fez carne”.
Aquele que era em forma de Deus tomou sobre si a forma de um servo e foi feito
semelhante aos homens; “e, achado na forma de homem, humilhou-se a si mesmo, sendo
obediente até à morte e morte de cruz” (Fp 2.8). Dessa forma, tendo se encarnado,
o Senhor da glória foi capaz de sofrer a morte, e assim foi que ele “provou” a
própria morte. Em suas palavras, “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito”, vemos
quão natural foi sua morte, e a realidade dela se torna ainda mais aparente
quando ele foi posto na sepultura, onde permaneceu por três dias.
Segundo: a
morte de Cristo foi não-natural. Por isso queremos dizer que ela foi anormal.
Acima dissemos que, ao se encarnar, o Filho de Deus tornou-se capaz de sofrer a
morte, todavia, não deve ser inferido daí que a morte tinha, portanto, um
direito a reclamar sobre ele; longe disso, o contrário mesmo era a verdade. A
morte é o salário do pecado, e ele não tinha nenhum. Antes de seu nascimento
foi dito a Maria: “[que] o ente santo que há de nascer será chamado
Filho de Deus” (Lc 1.35). Não somente o Senhor Jesus entrou neste mundo sem
contrair a contaminação da natureza humana caída, mas ele “não cometeu
pecado” (1Pe 2.22), “não [tinha] pecado” (1Jo 3.5) e “não conheceu pecado” (2Co
5.21). Em sua pessoa e em sua conduta ele foi o Santo de Deus “imaculado e
incontaminado” (1Pe 1.19). Como tal, a morte não tinha nenhum direito a
reclamar sobre ele. Até mesmo Pilatos teve que reconhecer que não pôde
encontrar “nenhuma culpa” nele. Por conseguinte, dizemos que o Santo de Deus morrer
foi não-natural.
Terceiro: a
morte de Cristo foi preternatural. Por meio disso queremos dizer que ela
foi marcada e determinada para ele de antemão. Ele era o Cordeiro morto
antes da fundação do mundo (Ap 13.8). Antes que Adão fosse criado, a Queda foi antecipada.
Antes de o pecado entrar no mundo, a salvação dele havia sido planejada por
Deus. Nos eternos conselhos da Deidade, foi ordenado de antemão que haveria um Salvador
para os pecadores, um Salvador que sofreria, o justo pelos injustos, um Salvador
que morreria para que pudéssemos viver. E “porque não havia nenhum outro suficientemente
bom para pagar o preço do pecado”, o Unigênito do Pai se ofereceu como o
resgate.
O caráter
preternatural da morte de Cristo leva o bom termo de o “sustentáculo da Cruz”.
Foi em vista da aproximação dessa morte que Deus “justamente ignorou os pecados
anteriormente cometidos” (Rm 3.25). Não tivesse sido Cristo, no conceito de Deus,
o Cordeiro morto desde antes da fundação do mundo, toda pessoa pecadora nos tempos
do Antigo Testamento teria sido lançada no abismo no momento em que ela pecasse!
Quarto: a
morte de Cristo foi sobrenatural. Por isso queremos dizer que ela foi diferente
de qualquer outra morte. Em todas as coisas ele tem a preeminência. Seu
nascimento foi diferente de todos os outros nascimentos. Sua vida foi diferente
de todas as outras vidas. E sua morte foi diferente de todas as outras mortes.
Isso foi claramente anunciado em sua própria declaração sobre o assunto: “Por
isso, o Pai me ama, porque dou a minha vida para tornar a tomá-la. Ninguém
ma tira de mim, mas eu de mim mesmo a dou; tenho poder para a dar e poder
para tornar a tomá-la. Esse mandamento recebi de meu Pai” (Jo 10:17,18). Um
estudo cuidadoso das narrativas evangélicas que descrevem sua morte fornece uma
prova sétupla e a verificação de sua asseveração.
(1) Que nosso
Senhor “deu a sua vida”, que ele não estava impotente nas mãos de seus inimigos,
revela-se claramente em João, onde temos o registro de sua prisão. Um bando
de oficiais da parte dos principais sacerdotes e dos fariseus, guiados por
Judas, o procuraram no Getsêmani. Adiantando-se para encontrá-los, o Senhor
Jesus pergunta: “A quem buscais?” A resposta foi: “Jesus de Nazaré”; e então
nosso Senhor expressou o inefável título de deidade, aquele pelo qual Deus se
revelou nos tempos antigos a Moisés na sarça ardente: “Eu Sou”. O efeito foi
impressionante. Esses oficiais ficaram apavorados. Eles estavam na presença da
deidade encarnada, e foram sobrepujados por uma breve consciência da majestade
divina. Quão claro é então que, se assim o tivesse agradado, nosso bendito
Salvador poderia ter se afastado calmamente, deixando aqueles que vieram lhe
prender prostrados no chão! Ao invés disso, ele se entregou nas mãos deles e
foi levado (não compelido) como um cordeiro ao matadouro.
(2)
Voltemo-nos agora para Mt 27.46 — o versículo mais solene em toda a Bíblia —
“E, perto da hora nona, exclamou Jesus em alta voz, dizendo: Eli, Eli,
lamá sabactâni, isto é, Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?”. As
palavras que pedimos ao leitor que observe cuidadosamente estão colocadas aqui
em itálico. Por que é que o Espírito Santo nos conta que o Salvador pronunciou
esse terrível clamor “em alta voz”? Com muita certeza que há uma razão para
tal. Isso se torna ainda mais aparente quando notamos que ele as repetiu quatro
versículos abaixo no mesmo capítulo — “E Jesus, clamando outra vez com
grande voz, entregou o espírito” (Mt 27.50).
O que então essas palavras indicam? Não corroboram elas o que foi dito nos parágrafos acima? Não nos dizem elas que o Salvador não estava exausto pelo que ele tinha passado? Não nos dão elas a entender que suas forças não o tinham deixado? Que ele ainda era senhor de si mesmo, que ao invés de ser conquistado pela morte, ele estava apenas se entregando para ela? Elas não nos mostram que Deus tinha posto “ajuda sobre um poderoso”? (Sl 89.19).
(3) Podemos
chamar a atenção para a sua próxima expressão sobre a Cruz — “Tenho sede”. Essa
palavra, à luz do seu contexto, fornece uma evidência maravilhosa do autocontrole
completo do nosso Senhor. O versículo inteiro diz o seguinte: “Depois, sabendo
Jesus que já todas as coisas estavam terminadas, para que a Escritura se cumprisse,
disse: Tenho sede” (Jo 19.28). Desde os tempos antigos tinha sido predito que eles
deveriam dar vinagre misturado com fel para o Salvador beber. E para que essa profecia
pudesse ser cumprida, ele exclamou: “Tenho sede”. Como isso evidencia o fato de
que ele estava em plena posse de suas faculdades mentais, que sua mente estava desanuviada,
que seus terríveis sofrimentos não a tinham transtornado nem perturbado!
Enquanto
permanecia pendurado na cruz, no final da hora sexta, sua mente reviveu
o escopo inteiro da palavra profética, e verificou cada uma daquelas predições
que faziam alusão à sua paixão. Excetuando as profecias que seriam cumpridas após
sua morte, só restava uma ainda não cumprida, a saber: “Deram-me fel por
mantimento, e na minha sede me deram a beber vinagre” (Sl 69.21), e isso
não foi negligenciado pelo bendito sofredor. “Sabendo Jesus que já todas
as coisas estavam terminadas, para que a Escritura (não ‘Escrituras’, sendo
a referência ao Sl 69.21) se cumprisse, disse: Tenho sede”. Novamente, dizemos,
que prova é fornecida aqui de que ele entregou sua vida de si mesmo!
(4) A próxima verificação que o Espírito Santo fornece das palavras do nosso Senhor em João 10.18 é encontrada em João 19.30: “E, quando Jesus tomou o vinagre, disse: Está consumado. E, inclinando a cabeça, entregou o espírito”. O que se pretende que aprendamos dessas palavras? O que é que se quer dizer aqui através desse ato do Salvador? Seguramente, a resposta não está longe. A implicação é clara. Antes disso a cabeça do nosso Senhor tinha estado erigida. Não era um sofredor impotente que pendia ali desmaiado. Tivesse esse sido o caso, sua cabeça teria se recostado sobre o peito, e seria impossível para ele “arqueá-la”. E observe atentamente o verbo usado aqui: não foi sua cabeça que “caiu”, mas ele, conscientemente, calmamente, reverentemente, inclinou sua cabeça. Quão sublime foi sua atitude mesmo sobre o madeiro! Que compostura esplêndida ele evidenciou. Não foi sua majestosa atitude sobre a cruz que, entre outras coisas, fez com que o centurião clamasse: “Verdadeiramente, este era o Filho de Deus”? (Mateus 27.54).
Deus nos abençoe!
Arthur W. Pink (1886-1952).
Amém🙏
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